Topo

Leonardo Sakamoto

Bloqueio dos EUA: Negacionismo de Bolsonaro torna Brasil um risco sanitário

Enterro coletivo é feito em cova comum aberta por trator no Cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus - Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo
Enterro coletivo é feito em cova comum aberta por trator no Cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus Imagem: Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

24/05/2020 21h28

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Estrangeiros que estiveram no Brasil 14 dias antes estão proibidos de entrar nos Estados Unidos a partir da próxima sexta (29). Poderíamos dizer que a razão é o fato dos casos de covid-19 estarem escalando por aqui e, com isso, o governo Donald Trump desejou bloquear mais um possível foco de infecção num momento em que os Estados Unidos atingem 100 mil mortes pela doença.

Mas podemos simplificar dizendo que isso é um indicador do impacto do negacionismo do governo Jair Bolsonaro, exemplo único entre os países da América do Sul.

O bloqueio de viajantes que não sejam cidadãos norte-americanos, nem residentes ou casos especiais diz mais sobre nós do que sobre eles. Nações são soberanas para adotarem as políticas sanitárias que acharem melhor, por mais que discordemos delas. Os Estados Unidos já haviam suspendido entradas da China, da União Europeia e mesmo do Reino Unido pelo mesmo motivo.

Agora, a incompetência do governo brasileiro em manter a infecção em níveis civilizados nos garantiu a medalha de prata global em número oficial de contaminados: 363.211, até este domingo. Mesmo considerando que há uma pornográfica subnotificação e uma obscena falta de testagem por aqui, estamos nos esforçando para roubar o primeiro lugar dos EUA. Natural, portanto, que outros países nos queiram longe.

Atente-se que a decisão norte-americana não vale, por enquanto, para pessoas que venham de outros países vizinhos do Brasil, como a Argentina, por exemplo. Ou seja, não é uma questão de amizade - pois Trump é mais amigo de Bolsonaro (pelo menos é o que nosso presidente pensa) do que de Alberto Fernández. Mas de controle da pandemia. O governo de nossos hermanos não enfiou a cabeça em um buraco. Pelo contrário, tomou as medidas necessárias. Por lá, o coronavírus tem sido menos mortal.

O negacionismo de Bolsonaro já é reconhecido internacionalmente. Tratado como pária ambiental desde o salto na destruição da Amazônia (que já voltou com força neste ano, diga-se de passagem), passou a ser visto também como risco sanitário global.

Correspondentes internacionais destacaram quando Bolsonaro chamou a pandemia de "gripezinha", "resfriadinho", "fantasia" e "histeria". Jornais liberais e conservadores dos Estados Unidos se espantaram quando ele disse "E daí?" para o número galopante de mortos. E grandes investidores com o mínimo de preocupação social olharam com desencanto quando ele incentivou aglomerações.

Muita gente lá fora acreditou que o presidente daria um cavalo de pau no discurso, como seu ídolo Trump ou o inglês Boris Johnson - que, pelo menos da boca para fora, apoiaram medidas de isolamento e distanciamento social e reconheceram a gravidade da doença após terem deixado a coisa desandar em seus países. O que mostra que muita gente não conhece Bolsonaro.

Dirigindo um ônibus lotado, o presidente brasileiro avistou uma pedra no meio da estrada. Líderes como Angela Merkel, da Alemanha, ou Jacinda Ardern, da Nova Zelândia, na mesma situação, reduziram a velocidade do ônibus até quase frear e procuraram formas de ultrapassar o obstáculo em segurança. Bolsonaro, ao invés de fazer o mesmo, acelerou com a esperança de que a alta velocidade destruísse o obstáculo. Calculou que isso deixaria passageiros mortos, mas refletiu que todos morrem um dia, principalmente os mais velhos. E, portanto, valeria a pena porque o ônibus chegaria no prazo, de forma a não causar prejuízo para os donos da companhia de transporte.

Ele preferiu apostar em uma reabertura forçada da economia, pois acredita que um desemprego prolongado transformará seu mandato em um morto-vivo. O problema é que voltar ao trabalho e reabrir comércios não vai afugentar o vírus, pelo contrário: será o empurrãozinho que ele precisa para passarmos de tragédia para massacre.

Mas também apostou que, caso a maionese desande de vez, com hospitais em colapso, cadáveres amontoados, milhões sem comida gerando saques e protestos, ele poderá tomar medidas autoritárias, suspendendo direitos e liberdades. Com o apoio do que ele chama de "povo, que é o naco radical de seus apoiadores, para quem liberou armas e munição, e setores das Forças Armadas.

Como venho dizendo aqui, o presidente ataca as quarentenas, chamando-as de "inúteis" em lives nas redes sociais. Afirma, de forma cínica, que elas não foram capazes de impedir as 22.666 mortes por covid-19 (até este domingo), sendo que as medidas de isolamento social têm sido responsáveis por postergar o colapso do sistema de saúde e, portanto, evitado que um número maior de óbitos. Culpa governadores e prefeitos pelo desemprego decorrente do isolamento e conclama empresários para uma "guerra" pela reabertura forçada da economia.

Ao mesmo tempo, derrama cloroquina na população, um remédio que já provou não valer o risco que traz. Mas a promessa de um elixir mágico e barato ajuda a enfraquecer a importância da quarentena.

Diante de tudo isso, a pergunta de um colega jornalista de Nova York com quem conversei neste domingo não era "o que aconteceu para bloquearem o Brasil?", mas "por que demorou tanto?"

Até a publicação deste texto, o chanceler Ernesto Araújo havia feito uma única postagem no Twitter sobre os Estados Unidos: "Em conversa hoje com representantes da Casa Branca, dentro da ótima cooperação Brasil-EUA no combate ao Covid-19, recebi a notícia de que o Presidente Donald Trump determinou a doação de 1.000 respiradores ao Brasil. Parceria produtiva entre duas grandes democracias".

Grande dia.