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Leonardo Sakamoto

"Preso comum, não. Queiroz, amigo do presidente. Melhor do que você"

Queiroz (à dir.) é ex-motorista e ex-segurança do hoje senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente - Reprodução/Instagram
Queiroz (à dir.) é ex-motorista e ex-segurança do hoje senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

13/07/2020 02h30

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O presidente do Superior Tribunal de Justiça, que quer ser indicado por Jair Bolsonaro para a Suprema Corte, autorizou que uma foragida fosse para a prisão domiciliar sob a justificativa de que seu marido, Fabrício Queiroz, que também ganhou o benefício, precisava de cuidados durante a pandemia por conta do tratamento de um câncer.

Com ambos de volta para casa, João Otávio de Noronha desarmou momentaneamente uma potencial delação de Márcia Aguiar, acusada de participar dos esquemas operados por Queiroz de desvios de recursos públicos de servidores dos gabinetes da família Bolsonaro.

Uma história como essa pode dar a impressão de que as instituições não estão funcionando normalmente no Brasil. Mas é o contrário: isso é a prova de que elas estão.

É que existe uma percepção equivocada de que elas são programadas para tratar todos como iguais. Bobagem. Funcionam rápido e bem para quem tem dinheiro, poder e amigos. O resto, que pegue uma senha e passe nervoso na fila do aplicativo da Caixa para o auxílio emergencial.

Esse "bom funcionamento" foi visto quando o próprio ministro Noronha concedeu o pedido de habeas corpus de Queiroz e Márcia Aguiar, mas disse não a outros que tinham a mesma justificativa, ou seja, questões de saúde. E quando magistrados de todo o Brasil - da primeira instância ao STF - deixaram pessoas morrerem ao negarem solicitações de transferência para a prisão domiciliar de idosos ou imunodeprimidos.

Isso choca porque estamos em uma pandemia. Mas o rigor com os mais pobres e a seletividade são recorrentes. Por exemplo, quando Valdete foi condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete. Ou quando Franciely foi acusada de roubo de duas canetas mesmo após ter mostrado o comprovante de pagamento por ambas em um hipermercado. Ou quando Maria Aparecida foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado - perdeu um olho enquanto estava presa. Ou quando Sueli foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja. Ou quando Rafael Braga foi preso durante as manifestações de junho de 2013 pela acusação de portar artefato explosivo - carregava, na verdade, Pinho Sol.

O fato de as prisões serem de maioria negra e pobre como sintoma do racismo institucional brasileiro não é novidade. A Justiça tem pesos diferentes a depender da classe social, tamanho da conta bancária, cor de pele, origem étnica, idade, gênero e orientação sexual dos envolvidos. O que choca é a cara de pau, com o STJ tascando uma dessas na nossa cara, assim, na lata.

Mas, justiça seja feita, isso não envolve apenas a Justiça. No Brasil do "cidadão, não, engenheiro civil, formado, melhor do que você", as mesmas coisas têm nomes diferentes. Depende de quem fala e sobre quem se fala.

Construímos um país em que "manifestantes" são aqueles que fecham avenidas para lutar por algo com o qual a elite concorda e "baderneiros" são aqueles que fazem o mesmo por algo sobre o qual ela discorda. No qual rico que deixa de pagar milhões em impostos está apenas "exercendo seu protesto contra a pesada carga tributária" ou "adaptando o cronograma de desembolsos de sua amortização de débitos à realidade de seu caixa". Mas quando ocorre com o pobre, ele é o "caloteiro", o "vagabundo", o "aproveitador" que não pagou a mensalidade do carnê da geladeira porque foi demitido.

Qualquer rico ou pobre em prisão preventiva, que esteja em situação de risco na pandemia por suas condições de saúde, deveria ter direito a um habeas corpus para ir à prisão domiciliar. Mas quando a Justiça recebe pedidos semelhantes e diz "sim" para o de Fabrício Queiroz e Marcia Aguiar porque viam nele "direitos", mas fala "não" para o de pobres porque enxergavam nele "privilégios", precisamos urgentemente refundar um país.

O Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) solicitou, nesta sexta (10), um habeas corpus coletivo para estender a outros presos o que foi concedido a Queiroz, como esta coluna noticiou. Uma resposta negativa de Noronha vai escrachar, mais uma vez, as preferências da Justiça brasileira.

Em 2018, o mesmo coletivo obteve no STF um HC coletivo para a transferência à prisão domiciliar de mulheres grávidas ou mães de crianças até 12 anos que estavam em preventiva. Citaram como referência o benefício concedido a Adriana Ancelmo, então companheira do ex-governador Sergio Cabral. Apesar de milhares de mulheres terem sido soltas, outras tantas permanecem presas por negativa de magistrados.

Por que as instituições estão funcionando normalmente. Daquele jeito brasileiro, torto, injusto, orgulhoso de si mesmo.