Resgatado da escravidão no sisal passou mais de 10 anos em fazenda na Bahia
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Um homem de 67 anos foi resgatado de condições análogas às de escravo após trabalhar por mais de dez anos na produção de sisal em uma fazenda no interior da Bahia. Ele foi um dos 37 trabalhadores libertados pelo grupo móvel de fiscalização, em operação que terminou nesta terça (20), nos municípios de Várzea Nova, Jacobina e Mulungu do Morro.
"Em quase sete anos de combate ao trabalho escravo, poucas vezes vi uma situação assim. Um desrespeito completo à dignidade das pessoas, não só pela condição degradante causada pela ausência de água, de banheiro, de alojamento, de comida, mas também por quase não receberem nada", afirmou à coluna André Dourado, que coordenou a ação junto com Gislene Stacholski, ambos auditores fiscais do trabalho.
Dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, do Ministério da Economia, mais de 55 mil pessoas foram resgatadas da escravidão contemporânea pelo governo brasileiro desde 1995, quando o país criou seu sistema de combate a esse crime.
De acordo com a fiscalização, os trabalhadores foram encontrados em barracos e casas precárias sem condições mínimas de habitação. A água para beber ou para cozinhar era amarelada e armazenada em galões de produtos químicos reutilizados.
Os trabalhadores dormiam em pedaços de espumas colocados em cima de varas de sisal. Não havia banheiros e as necessidades fisiológicas eram feitas no mato. Alguns recebiam de R$ 350 a 950, sem direitos.
Trabalhador não sabia mais como usar um banheiro
A pior situação era exatamente a do trabalhador idoso. Ele estava em uma casa suja com telhado com risco de queda, onde cozinhava no chão de um dos cômodos em uma fogueira. Tomava banho no mesmo local onde o gado, cachorros e urubus bebiam água. Recebia entre R$ 80 e R$ 90 por semana e, segundo seu depoimento aos auditores, passou fome e não tinha documentos.
"Ele passou lá tanto tempo que já se sentia parte daquilo, que tudo aquilo era normal, que a vida dele era aquilo mesmo", diz a auditora fiscal Gislene Stacholski. "Nesta segunda, ele foi levado para uma pousada. À noite, saiu para fazer as necessidades no mato. Avisaram a ele que havia um banheiro no quarto, mas ele disse que não sabia mais como usá-lo."
Tal como André Dourado, ela conta que, em oito anos de grupo móvel, essa foi a situação que mais a chocou. "Faz tempo que não encontramos uma situação de miséria tão grande quanto a que vimos no sisal", avalia.
Por falta de orientação, não recebeu o auxílio emergencial durante a pandemia, nem estava inscrito em qualquer programa assistencial, como o Benefício de Prestação Continuada.
"A situação encontrada na região do sisal requer a atuação enérgica dos órgãos de proteção ao trabalhador, pois foram verificadas condições de trabalho extremamente precarizadas", afirmou à coluna a procuradora do Trabalho Janine Milbratz Fiorot, que participou da operação. "Trabalhadores explorados em proveito de uma cadeia produtiva que também precisa ser responsabilizada. O MPT pretende doravante atuar de maneira a regularizar o trabalho e responsabilizar pelas ilicitudes."
Participaram da operação, além de auditores fiscais do trabalho, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Polícia Federal.
A ação nasceu de investigação da inteligência do grupo móvel. O nome dos envolvidos ainda não foi divulgado para não atrapalhar o processo de pagamento de salários e direitos atrasados e do dano moral individual estipulado pela DPU e o MPT, que está em andamento, segundo os auditores. Um dos empregadores não foi localizado e será alvo de ação judicial. A fiscalização estima o montante em R$ 400 mil.
Trabalho escravo no Brasil hoje
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
As mais de 55 mil pessoas foram em sua maioria resgatadas por grupos especiais de fiscalização móvel, coordenados por auditores fiscais do trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências Regional do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.
Trabalhadores têm sido encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordeis, entre outras atividades.