Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bolsonaro te dá o direito de morrer de covid, mas não de criticá-lo
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Jair Bolsonaro tem dedicado o seu tempo a encontrar formas criativas de sabotar as ações de governadores e prefeitos no combate à covid-19 em meio a quase 3 mil óbitos por dia. E de criar um ambiente de terror, em que criticá-lo publicamente pela sabotagem pode render prisão. Para ele, o brasileiro de bem é o que morre da doença em silêncio.
Certos governos autoritários pelo mundo tiveram melhores resultados no combate à pandemia devido à imposição de medidas de reengenharia social. Nosso governo autoritário, por outro lado, é o pior dos dois mundos. Ou seja, passa por cima de liberdades individuais para entregar mais gente à morte.
Nos últimos lances bizarros, o presidente pediu ao Supremo Tribunal Federal para impedir governadores de decretarem medidas de restrição à circulação de pessoas e ao funcionamento de atividades econômicas sem passar pelo crivo do Poder Legislativo. De uma forma tosca, defende que lockdown deveria afetar as pessoas doentes, uma vez que ele serve para não ficarmos doentes.
No pedido, ao qual a colunista Carla Araújo, aqui do UOL, teve acesso, ele defende que mesmo em meio à escalada de mortes, o fechamento de serviços não essenciais "devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar".
Percebam a sacanagem nas entrelinhas. Novamente Bolsonaro pratica um esporte em que é campeão, o Arremesso de Responsabilidade à Distância. Traduzindo: os pobres que se virem. Era ele quem deveria estar possibilitando a subsistência pessoal e familiar nos meses de pico de crise. Mas o máximo que fez, após pressionado e de forma atrasada, será pagar uma merreca mensal entre R$ 150 e R$ 375.
Com a fome crescendo, a falta de leitos de UTIs, a escassez de oxigênio e o número de mortos escalando, é claro que uma parte da população iria criticá-lo. Para 79% dos brasileiros, segundo o Datafolha, a pandemia está descontrolada.
Quando a população vê que lideranças no Congresso Nacional e a Procuradoria-Geral da República são coniventes com a tragédia em curso, não tem muitas saídas a não ser protestar. O governo se aproveita que as críticas e manifestações são de indivíduos e grupos e vai para cima, de forma covarde. Se não vivêssemos uma pandemia assassina com transmissão por ar, seriam multidões gritando "genocida" nas ruas.
O empresário e youtuber Felipe Neto recebeu uma intimação policial no Rio de Janeiro por ter chamado Jair de genocida após uma reclamação do vereador Carlos Bolsonaro. O ministro da Justiça, André Mendonça, mandou a Polícia Federal abrir inquérito por conta de outdoors em Palmas que disseram que "Bolsonaro não vale um pequi roído". A Polícia Militar deteve cinco pessoas que protestavam com uma faixa chamando o presidente de genocida em Brasília.
Nenhuma dessas críticas foi um risco à integridade física do presidente, nem um ataque à democracia. São, na verdade, agressões à liberdade de expressão usando como base um entulho da ditadura, a Lei de Segurança Nacional.
A isso se somam outros absurdos. Professores da Universidade Federal de Pelotas tiveram que se comprometer por escrito a não realizarem manifestações de desapreço ao presidente por conta de críticas - entre eles, Pedro Hallal, ex-reitor, que coordenou um dos mais importantes projetos de monitoramento da covid no país. Isso sem contar os inquéritos abertos e ameaças contra jornalistas nos últimos meses.
Bolsonaro tem aumentado consideravelmente as chances para que os brasileiros morram de covid com sua política do "se pegar, pegou, se morrer, morreu". Está mais preocupado na queda de sua popularidade por conta de interrupção de setores econômicos do que na perda de vidas. E quem criticar, leva pedrada - o que também ajuda a desviar os focos das denúncias de corrupção sobre sua família.
Sob Bolsonaro, você tem direito de morrer de covid, desde que se vá em silêncio, sem criticá-lo.
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague.
Chico Buarque escreveu estes versos irônicos em 1971, durante a vigência do Ato Institucional número 5, que permitiu à ditadura militar baixar a censura e descer o cacete geral. A diferença agora é que, no regime autoritário bolsonarista, até a permissão para respirar foi revogada.