Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Punição para aglomeração deveria ser atuar como 'voluntário' em hospital
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Sem o auxílio emergencial, uma parte da população tem sido empurrada para se contaminar na busca por sustento em meio aos recordes de mortes por covid-19. Aglomera-se no transporte público, disputando espaço com outros trabalhadores, que vão ao sacrifício por atuarem em atividades essenciais, ou seja, por se arriscarem por nós.
Se o Congresso Nacional estiver preocupado com a dignidade dessas pessoas aumentará o valor do auxílio emergencial proposto pelo governo federal - que, nesta rodada, vai de imorais R$ 150 a obscenos R$ 375 mensais por domicílio. No primeiro semestre de 2020, o benefício para garantir a subsistência foi de R$ 600/R$ 1200. Enquanto isso, grandes empresas e fundações poderiam doar máscaras N95/PFF2, mais capazes de reduzir o contágio em ônibus e trens, enquanto a vacina não vem para todos.
Há outros grupos, contudo, que estão se aglomerando por livre e espontânea vontade. Dividem-se, grosso modo, entre os "cansados" e os "negacionistas".
Os "cansados" estão exaustos dessa pereba maldita e do isolamento social, única forma eficaz para preveni-la. Bem, entende-se que lazer e descanso não são banais ou sinais de fraqueza, ainda mais num momento em que nossa sanidade mental é posta à prova através de um isolamento prolongado. Maaaaaas, por mais que isso seja compreensível, somos o pior país do planeta em termos de mortalidade diária pela covid. Um cemitério a céu aberto.
Nesta segunda (22), batemos novamente a média móvel de mortes, com 2.298 óbitos nos últimos sete dias. Foram 1.570 registradas nas últimas 24 horas, totalizando 295.685 desde o início da pandemia.
Já o segundo grupo se aglomera em festas e churrascos acreditando que é invencível ou que tudo se trata de uma "gripezinha" ou um "resfriadinho" e é só tomar vermífugo que resolve. Daí, quando internados em UTIs, perguntam como foram parar ali se usaram ivermectina como "tratamento precoce". Ou, sem entender como seus pais e avós pegaram morreram se ficaram isolados em casa, acusam a inutilidade das quarentenas e não a si mesmos de ter transmitido a eles.
Quando a doença deu uma leve trégua entre a primeira e a segunda ondas, era possível ir à praia adotando medidas de distanciamento e cuidados sanitários. Imagens que circularam na imprensa, nas últimas semanas, mostraram, contudo, uma situação no qual os cuidados foram para o espaço enquanto as mortes escalavam. Certas surubas têm mais distanciamento que os banhistas que levaram seus coronavírus para tomar sol e cerveja.
Isso levou a prefeituras de balneários, mesmo os mais reticentes, a fecharem suas orlas.
Há o risco do Brasil se tornar uma "sopa de variantes" de covid-19. Sem vacinas em quantidade adequada e sem a aplicação de medidas de isolamento, temos um vírus correndo solto. E quanto maior a replicação, maior a probabilidade de surgirem mutações que tragam vantagens ao vírus. Vimos do que essas mutações são capazes, com maior potencial de infecção e, portanto, de entupir hospitais até a boca, levando-os ao colapso. E, com isso, mais mortes.
Alheio a tudo isso, o presidente segue incansável atacando o isolamento social. Aproveitou um evento, nesta segunda (22), para criticar novamente as restrições de circulação que vêm sendo adotadas em Estados e municípios. E apesar dos resultados positivos do lockdown em locais como a cidade chinesa de Wuhan, foco inicial da pandemia, ou mesmo a paulista Araraquara, ele diz que não foi "convencido" de que isso funciona.
"Se ficar em lockdown em 30 dias e acabar com vírus eu topo, mas sabemos que não vai acabar", disse Bolsonaro.
A esta altura da tragédia, não acabaria, mas reduziria absurdamente o número de mortos e as perdas econômicas, como apontam especialistas mais gabaritados do que o presidente - que deve ter tirado o diploma de epidemiologista na Universidade do WhatsApp.
Como escrevi neste espaço, neste domingo, Jair Bolsonaro é causa, mas também consequência de um pedaço do Brasil que só é solidário consigo mesmo e que não acredita na ciência quando ela não confirma suas crenças. Esperemos que esse pessoal não precise perder alguém que ama antes de perceber a bobagem que está fazendo.
Se não houvesse um risco biológico envolvido, seria didático que a punição para quem promove aglomerações fosse ajudar profissionais de saúde na linha de frente durante alguns dias.
Ver pacientes lutando para continuarem vivos e médicos e enfermeiros se esfolando para mantê-los respirando poderia ajudar a trazer de volta a empatia perdida.
Se a regra valesse para o presidente da República, ele estaria em um hospital ou uma Unidade de Pronto Atendimento ajudando médicos e enfermeiros desde o início da pandemia até hoje dada a quantidade de aglomerações que promoveu. Talvez, dessa forma, teria sido útil.