Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mitomania de Bolsonaro o colocou na liderança global das mortes por covid
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Todos os governantes mentem. A questão é que as mentiras de Bolsonaro - negando a gravidade da covid-19, cravando a inutilidade de quarentenas, incentivando o consumo de vermífugo, dizendo que aglomerar não faz mal, atacando a eficácia das vacinas - matam.
No dia 22 de março do ano passado, ele desprezou a pandemia e disse que o coronavírus mataria menos de 800 pessoas. Neste Primeiro de Abril, chegamos a 325.559 óbitos registrados. O número parece até mentira, mas é a realidade que construímos na última eleição presidencial.
Com os 3.673 óbitos das últimas 24 horas, o país ultrapassa a média semanal de 3 mil mortes. Em um dia, morreu mais gente aqui por covid do que nos Estados Unidos, México, Polônia, Itália, Índia e Ucrânia juntos, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Há colegas jornalistas com pudor de dizer abertamente "Bolsonaro mente" achando que isso extrapola o papel da imprensa. Mas quando a mentira é usada como instrumento de governo, da mesma forma que foi empregada como ferramenta de sua campanha eleitoral e como base de seus mandatos parlamentares, não afirmar isso com todas as letras é omissão. Quando as mentiras matam, não batizá-las como o que são é, no mínimo, cumplicidade.
Contadas à exaustão, as mentiras de Bolsonaro tornam-se farol e norte para milhões de fãs e seguidores. Ele não precisa que o Brasil inteiro acredite nelas, apenas que sejam repetidas por uma parcela de ingênuos, outra de oportunistas, outra ainda de sacanas, criando uma versão "alternativa" dos fatos. Se 16% acreditarem, o impeachment já fica difícil.
Como já disse aqui, a mentira é parte estrutural de sua gestão, estando presente em discursos, entrevistas, reuniões, para refutar quaisquer fatos e dados comprovados que estejam na contramão dos desejos do presidente. Quando a mentira é muito descarada e é pega no pulo, Bolsonaro adota a tática Donald Trump, afirmando que nunca disse o que efetivamente disse e chamando a imprensa de "fake news".
Como muitos de seus seguidores não se dão ao trabalho de checar em fontes confiáveis, a culpa passa a ser dos "jornalistas que querem derrubar o presidente".
A letalidade do vírus? Invenção dos telejornais da noite. Quarentena? Coisa de brasileiros covardes. Mortes em massa? Contabilidade mentirosa dos governadores. Inação do governo federal? O Supremo Tribunal Federal não o deixou agir.
O que o STF disse é que governadores e prefeitos também deveriam participar da elaboração da política contra a pandemia. Ou seja, lembrou que somos uma federação que deve ser gerida com base no diálogo entre União, Estados e municípios. Mas essa mentira é repetida por seus seguidores à exaustão.
Ao vender "fatos alternativos", semeia mortes e desemprego. Morte por muitos terem acreditado nele de que poderiam ir para a rua viver sua vida normal. Desemprego, pois a crise foi artificialmente alongada por que o governo não quis combater a pandemia.
Afinal, o que afasta os negócios não são quarentenas, mas pessoas morrendo. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua, divulgada nesta quarta (31), chegamos ao recorde de 14,3 milhões de desempregados - número subdimensionado porque muitos não procuram serviço por conta da pandemia.
Críticos à política do presidente acreditaram que as mentiras sobre a pandemia, de tão cabeludas, tropeçariam na montanha de cadáveres. Eu fui um deles. Mas a montanha de 300 mil chegou e o que vimos foi que os brasileiros se adaptaram à tragédia. E, ouvindo-a diariamente, rotinizaram as mentiras. Mesmo que tenhamos chegado a quase quatro mil mortos em apenas 24 horas.
Talvez a maior das mentiras é que nossa democracia é sólida e vai suportar tudo isso. Democracias não morrem apenas por golpes de Estado. Nem todas se vão de forma épica, algumas podem ir se esgarçando até desaparecerem. Como uma avó que não encontrou leito de UTI para covid e foi deixando o mundo devagarinho, sufocando em silêncio, numa maca de um corredor em uma unidade de pronto-atendimento.
Bolsonaro gosta da passagem bíblica do "Conhecereis a verdade e ela vos libertará" (Evangelho de João 8:32). Só não explica que a verdade é ele quem constrói.