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Montado no cinismo, Bolsonaro tentou parecer um presidente normal na TV
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Em pronunciamento nacional em cadeia de rádio e TV na noite desta quarta (2), Jair Bolsonaro apresentou-se como um presidente que fez de tudo para salvar vidas e garantir qualidade de vida durante a pandemia de covid-19. E mostrou um Brasil no qual as crises sanitária e econômica são praticamente coisa do passado.
Boa parte de nós adoraria viver no lugar desenhado por Bolsonaro, mas, infelizmente, para a maioria dos brasileiros, ele só existe na ficção. Tal como é ficção a existência de um presidente competente. Aliás, esse "Brasil das Maravilhas" é um país habitado pela parcela rica e protegida da sociedade - que conseguiu ganhar ainda mais dinheiro na pandemia graças a um líder que governa apenas para os seus, mas se vende como se para todos fosse.
Pressionado pela CPI da Covid, pelos protestos de rua e pelos baixos índices de popularidade (a última pesquisa Datafolha apontou 24% de aprovação e uma derrota para o ex-presidente Lula no segundo turno do ano que vem), Jair fez de conta que não foi o principal vetor da tragédia dos últimos 15 meses.
Mentiu que "o Brasil é o quarto país que mais vacina no planeta" (calcule pela proporção da população e chore) e que "neste ano, todos os brasileiros, que assim o desejarem, serão vacinados", o que é improvável. E não disse que a maioria já poderia ter sido imunizada, ainda neste semestre, se ele não tivesse ignorado as ofertas de milhões de doses da Pfizer e da CoronaVac no ano passado. Pior do que isso: se tivesse assinado a papelada, milhares não teriam morrido.
Exaltando o crescimento de 1,2% do PIB no primeiro trimestre, disse que o país deve crescer mais que 4% este ano. "A economia mostrou seu vigor, estando entre os países do mundo que mais cresceram", afirmou. Também celebrou que "a Bolsa de Valores bateu recorde histórico" e "a moeda brasileira se fortalece". Ignorou, contudo, os 14,8 milhões de desempregados, de acordo com o IBGE, e a dificuldade que vem encontrando em traduzir crescimento econômico em emprego.
Sim, a Faria Lima está soltando fogos de artifício, mas a favela não tem dinheiro para comprar óleo de soja, que dirá biribinha.
Bolsonaro bradou que não tirou "o sustento de milhões de trabalhadores informais", mas não cita que a fome avança porque ele interrompeu por 96 dias o pagamento do auxílio emergencial no final do ano. E quando o retomou, após pressão social, passou a pagar miseráveis parcelas de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375 - insuficientes para comprar uma cesta básica. Vale lembrar que, há um ano, o auxílio era de R$ 600 ou R$ 1200 por força do Congresso.
Falando sem a ajuda do teleprompter, onde leu o roteiro do pronunciamento, Bolsonaro mandou os pobres que reclamavam do baixo valor do auxílio emergencial se virarem na terça (1), como uma espécie de Maria Antonieta Tupiniquim: "Quem quer mais, é só ir no banco e fazer empréstimo".
E ao terceirizar a responsabilidade, um de seus esportes preferidos, acabou assumindo que nada fez para evitar que o coronavírus matasse 467 mil pessoas: "o nosso governo não obrigou ninguém a ficar em casa, não fechou o comércio, não fechou igrejas ou escolas". Sim, deixou o vírus circular, ampliando mortes e contágio em busca da mítica "imunidade de rebanho".
A tentativa de reposicionamento de marca do presidente da República não ocorre por conta da percepção de que estamos vivendo uma tragédia sem precedentes e que, por isso, ele governa um dos cemitérios de covid-19 do mundo. Sinceramente, o capitão não se importa com isso. Mas porque está com a corda no pescoço buscando uma nova narrativa. É medo o que ele está sentindo.
Antes que alguém se empolgue e comece com aquela bobagem de que isso mostra que ele mudou, um lembrete: a moderação ocorre porque é um pronunciamento para um público amplo. No próximo encontro com seus seguidores na porta do Palácio do Alvorada, ele voltará a chamar jornalistas mulheres de "quadrúpedes" e ameaçar golpes de Estado.