Topo

Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Resgates de escravizados já batem os de 2020 e ganham a cara da pandemia

Alojamento onde trabalhador resgatado da escravidão em Formosa (GO) vivia com a família - AFT
Alojamento onde trabalhador resgatado da escravidão em Formosa (GO) vivia com a família Imagem: AFT

Colunista do UOL

07/10/2021 09h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O Brasil retirou da escravidão contemporânea 1.015 trabalhadores desde o início deste ano em 102 estabelecimentos. Ao todo, foram 234 operações para verificar a existência desse tipo de crime. Com isso, os números já ultrapassam o encontrado em todo o ano de 2020, com 936 libertados e 276 ações de fiscalização.

Minas Gerais foi o Estado com o maior número de fiscalizações (54) até agora, totalizando 420 trabalhadores resgatados. É seguido por São Paulo (135) e Goiás (102). Os dados são da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência.

Em Minas, por exemplo, duas crianças de nove e dez anos e uma adolescente de 13 foram encontradas, junto com seus pais, em condições análogas às de escravo em uma fazenda de café e eucalipto em Minas Novas, região do Vale do Jequitinhonha, em fevereiro. De acordo com a fiscalização, eles passaram fome e a situação só não foi pior porque, na falta de salário, conseguiram receber o auxílio emergencial.

O empregador havia prometido um salário mínimo por mês ao trabalhador, mas ele recebeu entre R$ 300 e R$ 600 nos meses que recebeu algo. Às vezes, vinha apenas uma "feira" de alimentos. A esposa e os três filhos nada recebiam. Com a chegada da pandemia, caiu a frequência de visitas do patrão. "Sem isso [auxílio emergencial], eles teriam passado fome direto", avalia o auditor fiscal Hélio Ferreira Magalhães.

Com a suspensão do pagamento do benefício (o governo interrompeu em dezembro e só retomou em abril), a fome voltou a rondar a casa. No momento da fiscalização, foi constatado um pouco de arroz, de macarrão, sal e feijão e açúcar misturado com pó de café. Questionado sobre a razão dessa mistura, o trabalhador explicou que era para evitar que as crianças comessem o açúcar. Elas iam atrás do produto porque estavam com fome.

Já em Goiás, um homem foi resgatado do trabalho escravo, em agosto, em uma fazenda de gado durante uma operação de fiscalização, no município de Formosa, após mais de oito anos de serviço. Ele vivia com sua esposa e cinco filhos dormindo entre escorpiões e cobras, sem água e luz, com pouca comida e sob a poeira da mineração de calcário que ocorria perto de seu alojamento.

"Escorpião era demais, tinha muito. Um me picou e fiquei seis meses com a perna dormente. Já acordei com cobra no pescoço. Tinha coral, papa-pinto... Se não forrasse o chão e tapasse os buracos da casa todos os dias, os escorpiões picariam meus meninos. Dormia todo mundo no mesmo lugar. Assim eu ficava de olho nos bichos", afirmou Marilene da Costa, esposa de Itamar, trabalhador que foi resgatado. Todos passaram anos usando o mato como banheiro, sem energia elétrica e consumindo água salobra de um poço.

Num período marcado pelas quarentenas, outro tipo de trabalho escravo que ganhou atenção das autoridades foi o doméstico.

Dos vários casos de resgates que permaneceram anos sob jugo dos patrões e que ganharam a imprensa, o recordista (até agora) é o de Leda dos Santos, de 61 anos, que por 50 anos trabalhou para uma família sem receber salários. Ela, que havia sido entregue pelos parentes com dez anos nunca estudou, nem brincou. Foi resgatada, em maio, em Salvador, na Bahia.

Ao programa Fantástico, da TV Globo, o advogado da família acusada de escravizá-la afirmou: "Imagine que no seu seio familiar tenha uma pessoa que considere da sua família. O senhor vai pagar um salário para 'uma' ente da sua família?"

De acordo com Leda, ela só aprendeu a sair sozinha na rua aos 30 anos.

Falta de políticas aumentou vulnerabilidade dos trabalhadores na pandemia

Apesar do aumento no número de resgatados, ainda não é possível afirmar que o trabalho escravo cresceu no país do ano passado para cá, apenas que o número de resgates é maior. Há vários fatores que precisam ser levados em conta. Por exemplo, há atividades mais intensivas em mão de obra, ou seja, uma operação pode encontrar mais pessoas de uma só vez no café do que na construção civil.

O recorde de libertados ocorreu no ano de 2007, com 6.025 pessoas, quando ocorreram grandes resgates em fazendas de cana de açúcar, que usam muita mão de obra.

Além disso, o país teve uma operação especial em 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, o que gerou um aumento no número de resgatados. E no início da pandemia, no primeiro semestre de 2020, houve uma paralisação de atividades dos grupos nacionais de fiscalização.

Desde 1995, 56.722 foram resgatados da escravidão, de acordo com dados do Radar SIT - Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, organizado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho.

Porém, é consenso entre os pesquisadores e organizações que atuam nessa área que houve impacto da pandemia no aumento da vulnerabilidade da população em risco e, por conseguinte, no crescimento do trabalho escravo. O quanto é que ainda precisa ser mensurado.

Resgatados trabalhavam em fazenda de café mesmo com covid-19

Entidades da sociedade civil que atuam no combate ao trabalho escravo contemporâneo reclamam do valor pago na nova etapa do auxílio emergencial (R$ 150, R$ 250 ou R$ 375 por domicílio), o que não garante tranquilidade para grupos vulneráveis.

"Muitos trabalhadores gostariam de ficar em casa para se proteger da pandemia, mas não têm como. Eles têm que sair buscando qualquer serviço. Com esse auxílio mixaria que foi oferecido, não tem como sustentar a família", afirma o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha de combate à escravidão da Comissão Pastoral da Terra.

A maioria absoluta dos 71 resgatados da escravidão em uma fazenda de café, em Vila Valério (ES), em maio, estavam trabalhando com covid-19 quando foram encontrados pelos auditores fiscais do trabalho e por policiais federais.

"Desde o início do resgate foram diagnosticados 65 empregados com a doença. Constatamos inclusive que o empregador não realizou qualquer exame admissional", afirma o auditor fiscal Rodrigo Carvalho, coordenador da operação. E, mesmo com os sintomas, continuavam no serviço, sem que fossem isolados ou recebessem assistência por parte do empregador.

O grupo havia sido aliciado no Vale do Jequitinhonha (MG) sob promessas de boa remuneração e boas condições. Mas chegando no local, viram que receberiam bem menos que o prometido, além de serem submetidos a longas jornadas e encararem descontos ilegais de transporte e de alimentação. A situação de endividamento acabou configurando servidão por dívida.

ONU alertou para o risco de aumento do trabalho escravo

"O severo efeito socioeconômico da pandemia de covid-19 provavelmente irá aumentar o flagelo da escravidão moderna, que já afetava mais de 40 milhões de pessoas."

A declaração, do relator especial das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão, Tomoya Obokata, foi dada como alerta no início do ano passado. Na época, ele cobrou de governos que melhorem a proteção dos mais vulneráveis, que estão em situação ainda mais precária por conta do aumento do desemprego relacionado ao fechamento de empresas em meio ao coronavírus.

"Durante a atual emergência sanitária, exorto os Estados a identificar as pessoas que enfrentam o maior risco de cair em trabalhos exploradores e aumentar sua proteção por meio de políticas de salvaguarda", afirma Obokata.

"Se nenhuma ação for tomada nesse sentido, existe o risco de que significativamente mais pessoas sejam empurradas para a escravidão agora e no longo prazo."

Trabalho escravo no Brasil hoje

Os grupos de fiscalização móvel para o combate à escravidão existem desde 1995 e são integrados por auditores fiscais do Ministério do Trabalho, procuradores do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal, agentes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil ou Militar e por membros da Defensoria Pública da União.

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Trabalhadores têm sido encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordeis. A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada com trabalho escravo desde 1995.