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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Fechar fronteiras por variante é discriminação, dizem escritores africanos

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Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

28/11/2021 10h23

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A reação global à nova variante ômicron, detectada por cientistas da África do Sul, reforça o debate sobre xenofobia na pandemia. Europa, Estados Unidos, Brasil, entre outros países, fecharam as fronteiras para voos e visitantes vindos de países da África austral como medida preventiva. Com isso, estão sendo acusados de discriminação por cidadãos do continente africano.

Dois dos mais famosos escritores em língua portuguesa, o moçambicano Mia Couto e o angolano José Eduardo Agualusa, escreveram o texto "Duas Pandemias?", que estão circulando em suas redes, criticando o fechamento de fronteiras aos países do Sul da África, chamando a medida de anticientífica e lembrando que a África foi esquecida em termos de vacinação.

"O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas", afirmam Couto e Agualusa.

A variante ômicron ainda está sendo analisada para verificar se é capaz de escapar às vacinas e se é mais letal do que as outras em circulação. Dada a sua grande quantidade de mutações, ela foi colocada na categoria de "variante de preocupação" pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

"Enquanto a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas."

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já havia colocado África do Sul, Botsuana, Eswatini, Lesoto, Namíbia e Zimbábue em uma lista temporária de proibição de voos e viajantes por conta da variante ômicron. Agora, também recomenda o governo adotar o mesmo procedimento com visitantes de Angola, Malawi, Moçambique e Zâmbia.

A microbiologista Natália Pasternak explica que locais com baixos índices de vacinação e com alta interação social funcionam como caldeirões de produção de novas variantes. "A variante ômicron não é a primeira que vai surgir em países pobres que não conseguem vacinar toda sua população, nem será a última. Ou desenvolvemos um plano efetivo para imunizar o planeta ou a pandemia não vai acabar", avalia.

A diretora do Instituto Questão de Ciência vai além: "Se os países mais pobres não forem vacinados, iremos ficar abrindo e fechando fronteiras por anos. Fronteira fechada não resolve o problema porque, quando detectamos a existência de uma nova variante, ela já se espalhou. É ingênuo achar que podemos bloquear totalmente variantes de vírus".

O Brasil, aliás, vive uma contradição, pois fechou a entrada para África do Sul e países vizinhos, mas não exige para nenhum visitante estrangeiro (como norte-americanos e europeus, que passam por dificuldades no controle da doença) a necessidade de comprovar vacinação, apenas um teste de covid-19. Recomendada pela Anvisa na última quinta (25), a adoção do passaporte vacinal foi criticada publicamente pelo ministro da Justiça, Anderson Torres. O presidente Jair Bolsonaro tem se posicionado contra a medida.

Segue a íntegra do texto de Mia Couto e José Eduardo Agualusa

Duas pandemias?

No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registrado cinco novos casos de infeção, zero internamentos e zero mortes por covid-19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infeções.

Cientistas sul-africanos foram capazes de detetar e sequenciar uma nova variante do SARS-Cov-2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.

Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.

Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.

O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas.

Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.

Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações econômicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.