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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Chuva que mata precisa ser tema da eleição, não bobagens sobre comunismo

Sete pessoas da mesma família morreram em um deslizamento de terra - Ouvinte BandNews FM
Sete pessoas da mesma família morreram em um deslizamento de terra Imagem: Ouvinte BandNews FM

Colunista do UOL

03/04/2022 11h34

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Presidente e governadores gastam mais tempo passeando de helicóptero sobre os corpos soterrados e mentindo que não poderiam ter feito nada porque "choveu mais do que a média" do que discutindo políticas de moradia e de planejamento urbano e ações para mitigar o impacto das mudanças climáticas.

O Rio de Janeiro registrou, nos últimos dois dias, pelo menos 16 mortes, mais um capítulo da incompetência histórica do poder público diante das chuvas. Nos últimos meses, vimos centenas de cadáveres se acumularem também na Bahia, em Minas Gerais, em São Paulo e no próprio Rio, como na tragédia de Petrópolis - casos que vão se tornando mais frequentes enquanto o planeta aquece.

Políticos agem apenas diante dos estragos, como se tratassem de forma paliativa um paciente desenganado. Dessa forma, mortes por deslizamentos de terra e inundações foram se tornando parte do calendário anual no Rio, como o carnaval ou o reveillón.

Como a memória do eleitorado já estará seca em outubro, quem deseja alcançar ou manter o poder deveria ser cobrado agora a dizer o que planeja sobre prevenção desse tipo de desastres enquanto eles estão acontecendo. Hoje, essa rubrica é uma das primeiras a perder recursos no orçamento quando é necessário atender a necessidades de aliados.

Infelizmente, parte dos candidatos não faz ideia do que dizer. Ou evitam falar de medidas que podem soar impopulares, como a remoção de famílias de áreas de risco e sua instalação em um lugar digno, e a necessidade de mudança no comportamento predatório de setores do empresariado nacional, da agricultura, passando pelo extrativismo e a indústria até o setor imobiliário, que trabalham sob a lógica de cada um por si e Deus acima de todos.

Sabemos que o principal funcionário público do país, o presidente da República, tem como um dos pontos de seu "plano de governo" combater o Supremo Tribunal Federal, mas ele não diz nada sobre o que pretende fazer para reduzir o risco de pessoas morrerem soterradas.

Retirar a população de um local, com antecedência, e recoloca-la em outro, de forma decente e digna; melhorar uma comunidade para evitar deslizamentos; efetivar políticas de moradia que construam casas em locais fora de risco; atualizar o levantamento de novas áreas de risco e o desenvolvimento de protocolos de retirada; adotar sistemas de alertas decentes, emitidos dias antes são ações conhecidas que deveriam ser providenciadas pelos poderes municipal, estadual e federal.

Ao mesmo tempo, governos têm ignorado em seus planejamentos os estudos que mostram que a alteração do clima já afetou, de forma definitiva, nosso regime pluviométrico. E preferido jogar para a população o preço, econômico e social, dessa incompetência ao invés de reduzir de forma eficaz a emissão de gases de feito estufa, combatendo o desmatamento, e nos preparando para o pior, porque o pior vai vir.

Eventos extremos como esses não apenas vão continuar acontecendo e matando nos próximos anos, como ficarão mais frequentes. Não significa que grandes tempestades não ocorreriam sem o aquecimento global, mas a frequência delas passa de séculos ou décadas para anos. Eventos que afetam a todos, mas tiram a vida principalmente dos mais pobres por viverem de forma mais precária, nos piores locais das encostas de morros ou nas várzeas e fundos de vale.

Ironicamente, os únicos planos que realmente avançaram nos últimos anos foram os de afrouxamento das leis ambientais pelas mãos de deputados e senadores no Congresso (ajudando a esquentar terras públicas roubadas, por exemplo) e de retalhamento de portarias e instruções normativas no Ministério do Meio Ambiente. Sem contar, é claro, o grande projeto de enfraquecimento de instituições de fiscalização, monitoramento e controle, como o Ibama e o ICMBio.

A morte quase absoluta das políticas ambiental e climática do Brasil é talvez um dos mais graves defeitos deste governo, e dos mais prejudiciais ao país no longo prazo. E todos os que se debruçam sobre o assunto, de cientistas a organizações da sociedade civil, passando por políticos racionais, técnicos do governo e diplomatas até agropecuaristas, industriais e investidores responsáveis sabem que esse tema já seria difícil com um governo engajado. Na atual conjuntura, contudo, o prognóstico é sombrio.

Isso precisaria ser tema central da eleição porque diz respeito à nossa sobrevivência.

Infelizmente, para uma parcela significativa do eleitorado, é irrelevante o fato de que, hoje, centenas de pessoas morrem anualmente, soterradas ou afogadas. Também não faz diferença se, amanhã, elas podem ser milhares - inclusive elas mesmas.

Importante mesmo é os candidatos prometerem lutar contra cavaleiros templários bancados por bilionários de esquerda para incentivar a pedofilia, contra a tentativa de implantação em nossos cérebros de chips 5G chineses a fim de ler nossos pensamentos, contra a ameaça comunista de professores que ensinam os alunos a se tornarem gays e lésbicas. Enfim, contra a razão.