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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Militares mimam golpistas com notinhas enquanto fronteira segue uma peneira

Colunista do UOL

11/11/2022 10h26

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No lugar de um tuíte, veio uma nota inteira. Os comandantes das Forças Armadas deram uma passada de pano nos movimentos golpistas que acampam em torno de quartéis e ainda trancam rodovias estaduais através de uma nota na manhã desta sexta (11). Poderiam ter ficado em silêncio, cumprindo seus afazeres constitucionais, mas preferiram protagonizar mais um vexame.

Defenderam que os atos são legítimos, ignorando que eles não estão pedindo mais arroz e feijão, educação ou saúde, mas um golpe de Estado com participação das próprias Forças Armadas e prisão do presidente eleito. Dizem que eventuais restrições a esses protestos são "condenáveis", em um recado à Justiça e ao Ministério Público, que têm agido pelo fim dos atentados à democracia.

Também afirmam que "eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública" são condenáveis. Eventuais? Para além da natureza dos protestos em si já colocarem em risco os direitos individuais e coletivos, temos cenas de golpistas atirando na polícia, como em Novo Progresso (PA), e espancando policiais, a exemplo de Rio do Sul (SC).

Algumas pessoas bem-aventuradas tentaram, como no clássico A Vida de Brian, ver o "lado bom da vida" por conta desse comentário sobre os excessos nos atos. Esquecem que, como o protagonista da comédia de Monty Python, todos nós estamos sendo crucificados por engano através das ações de golpistas que não aceitam o resultado da eleição e, agora, ainda ganham um afago dos comandantes militares. Ou seja, a nota não tem lado bom.

Não é um tuíte, como o do general Eduardo Villas Bôas, mas tem o mesmo sentido de se extrapolar as funções e se meter na política que deveria ser tocada por civis.

Recordar é viver: às vésperas de um julgamento do habeas corpus solicitado pela defesa do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, em 3 de abril de 2018, o enão comandante do Exército pressionou e chantageou os ministros. O HC acabou negado e Lula passou 580 dias na cadeia e, na esteira disso, veja só que coincidência, Jair Bolsonaro foi eleito.

A nota é a segunda que afaga golpista em dois dias

As Forças Armadas foram duramente criticadas por golpistas que estão orando na porta dos quartéis depois que o seu relatório sobre a credibilidade do sistema eletrônico de votação não apontar uma única fraude. Para agradá-los, o Ministério da Defesa se humilhou com uma nota pública, nesta quinta (10), baseada em uma falácia descrita no mais básico manual de lógica.

De acordo com o texto, o trabalho da equipe de técnicos militares "embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022". Bobagem. Não é porque as Forças Armadas não conseguiram provar que fraudes são impossíveis que elas ocorreram de fato.

Uma das razões da nota de sexta é que as Forças Armadas teriam se sentido desprestigiadas pelo fato de seu relatório não ter provocado o impacto que esperava no Tribunal Superior Eleitoral.

Isso é irônico por que a população também se sente desprestigiada quando as Forças Armadas não evitam que a fronteira brasileira seja uma peneira, fuzilam inocentes ao invés de protegê-los ou ainda gasta dinheiro do contribuinte comprando Viagra e próteses penianas. E nem por isso, deixamos nosso afazeres para pedir golpe de Estado.

Se a cúpula das Forças Armadas dedicasse a mesma energia com a qual está passando pano nas manifestações golpistas na fronteira Oeste da Amazônia brasileira, talvez a história do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips tivesse sido diferente. A região é um dos pontos mais desprotegidos do país, o que garante a traficantes de drogas atuarem livremente entre o Brasil, o Peru e a Colômbia, impondo sua ordem a populações indígenas e comunidades ribeirinhas.

A presença seletiva do Estado, que chancela a ação de madeireiros, pescadores, caçadores e garimpeiros ilegais e ataca instituições de monitoramento e controle, garante uma cara de terra de ninguém. Claro que não depende apenas da vontade de generais o aumento de contingente e a garantia de infraestrutura para que possam cumprir suas funções. Mas se eles se manifestassem publicamente por mais recursos para proteger aquela região com o mesmo vigor com o qual criticam o TSE, certamente seriam ouvidos.

Seria ótimo que essa presteza para passar pano aos golpistas também estivesse presente junto à população mais pobre. Se assim fosse, oito militares não teriam fuzilado com mais de 80 tiros o carro em que o músico Evaldo Rosa dos Santos estava com sua esposa, seu filho de sete anos, uma afilhada, de 13, e seu sogro, indo a um chá de bebê em Guadalupe, Zona Norte do Rio, em 7 de abril de 2019. Também metralharam o catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentou ajudar a família.

Por fim, o caso da compra de Viagra e de próteses penianas pelas Forças Armadas mostram como o atual governo amoleceu os militares. Indícios de sobrepreço de até 143% na compra de milhares de comprimidos de Viagra pelas Forças Armadas vieram um pouco dantes da informação de que o Exército adquiriu R$ 3,5 milhões em próteses penianas de 10 a 25 centímetros com recursos públicos.

Ao invés de gastar tempo com notas, militares precisam evitar corrupção em suas fileiras

Forças Armadas são importantes para qualquer país, desde que saibam quem devem proteger. A sua potência está na capacidade de respeitar a Constituição Federal, não de obter benefícios em troca de ser usada para atender às necessidades de um governo de plantão e de golpistas que acampam na porta de suas instalações.

Nos últimos três anos e meio, Jair Bolsonaro conseguiu cooptar parte dos militares com cargos, vantagens na Reforma da Previdência, licitações de produtos de luxo para o oficialato. Cobrou, em troca, sujeição para degradar a democracia e cumplicidade enquanto garantia o vale-tudo ambiental na Amazônia.

Com isso, o chefe do Poder Executivo ajudou no rebranding das Forças Armadas, como já disse aqui. Com o capitão, a imagem transmitida pode ser uma cena de Pier Paolo Pasolini, com um comboio de veículos blindados, tossindo fumaça preta na Esplanada dos Ministérios, enquanto seus membros se beneficiam de Viagra e próteses penianas, camarão e filé mignon, pensões especiais para filhas não casadas e acesso a hospitais especiais.

Ou uma de David Cronemberg, com coronéis articulando bizarras reuniões em que se negocia com reverendos, servidores públicos e indicados de políticos, sobrepreço e propinas para a compra de doses de vacina contra a covid-19 enquanto pessoas morrem por falta de imunizante. Personagens não faltam uma vez que a CPI da Covid citou um rosário de coronéis, como Élcio Franco, Marcelo Blanco, Helcio Bruno...

Ao invés de se manifestar através de notas sobre o processo eleitoral e seus desdobramentos, os militares gastariam melhor o seu tempo depurando suas próprias fileiras. Pois há os que, com sua ação e inação, foram cúmplices da montanha de mais de 690 mil mortes por covid-19 fomentada por Bolsonaro, como o general Eduardo Pazuello.

Uma das diferenças entre um governo militar e um civil é que no civil, os militares que desejam atuar politicamente devem fazê-lo pela via eleitoral. Eles podem participar de governos, mas se quiserem assumir a posição de atores políticos que aposentem a farda e busquem a legitimidade do voto.

O problema é que, uma vez aberta a porteira, é difícil de fechá-la. E ela foi aberta por Bolsonaro através da sociedade que estabeleceu com os militares em seu governo. Mas isso precisa ser desfeito pelo próximo governo, uma vez que a democracia não resiste a um estouro de boiada.

Os governos civis pós-1988 distanciaram os militares do processo decisório do país não apenas por traumas do passado, mas também por uma visão de democracia que emana do povo, não dos quartéis. E o povo falou pelas urnas nas eleições. Que essa vontade seja respeitada.