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Bolsonaro defendeu empresas flagradas com trabalho escravo em seu governo
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Durante os quatro anos, Jair Bolsonaro (PL) defendeu empresários responsabilizados por trabalho análogo ao de escravo, atacou equipes de fiscalização que resgatavam pessoas e ameaçou revogar a principal lei aprovada nos últimos anos para combater esse crime. Há registros de declarações em 2019, 2020, 2021 e 2022. O então presidente chegou a questionar "quem tem coragem de investir num país como esse daqui?" por conta da legislação de combate à escravidão.
O tema ganhou visibilidade na última semana com os 207 resgatados na cadeia da produção do vinho de empresas como Aurora, Garibaldi e Salton e as com as manifestações racistas, xenófobas e preconceituosas dadas por políticos, como o vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel, e empresários, como o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves.
Em especial, Bolsonaro travou uma cruzada contra a emenda constitucional 81, lei que prevê o confisco de propriedades condenadas por esse crime e sua destinação à reforma agrária e ao uso habitacional urbano. A chamada PEC do Trabalho Escravo, considerada pelas Nações Unidas uma das mais importantes leis de combate à escravidão em todo o mundo, foi promulgada em 2014 após 19 anos de pressão da sociedade civil. E, desde então, espera regulamentação.
Chamando a caracterização por trabalho escravo de "possível erro da função do trabalho", Bolsonaro questionou em 30 de julho de 2019:
"De acordo com quem vai autuar ou não aquele possível erro da função do trabalho, a pessoa vai responder por trabalho escravo. E aí, se for condenado, dada a confusão que existe na Constituição no meu entender, o elemento perde sua propriedade", afirmou. "Esse cidadão vai perder a fazenda. Vão ele, netos e bisnetos para a rua, se não for para a cadeia. Quem tem coragem de investir num país como esse daqui?"
Na mesma ocasião, ele repetiu uma justificativa que, segundo a Inspeção do Trabalho, é mentirosa e usada por flagrados pelo crime: de que os fiscais caracterizam escravidão contemporânea através de autuações leves como colchão fino, falta de ventilação e roupa de cama rasgada.
No resgate dos 207 em Bento Gonçalves, os trabalhadores eram vítimas de choques elétricos, spray de pimenta e espancamentos com cassetetes, também eram alvo de vigilância armada em um alojamento que cheirava a urina e a fezes, estavam submetidos a jornadas que iam das 4h às 21h e trabalhavam para quitar dívidas.
Bolsonaro tentou amenizar casos usando justificativa de escravagistas
Em 12 de novembro de 2020, voltou a atacar a emenda 81, dizendo que quando deputado federal, votou contra a proposta. O que era mentira: os registros da Câmara apontam que ele votou a favor no primeiro turno, em 11 de agosto de 2004, e estava ausente no segundo turno em 22 de maio de 2012.
Também aproveitou para confundir a população sobre o tema, afirmando que a fiscalização configurava o crime quando há "alojamento mal ventilado, roupa de cama suja e afastamento não regulamentar entre uma cama e outra". Queria fazer crer que irregularidades trabalhistas configurariam trabalho análogo ao de escravo, ignorando o pacote de autuações graves, como cerceamento de liberdade, servidão por dívida, falta de banheiros, alojamentos em condições sub-humanas que caracterizam o crime.
Bolsonaro aproveitou o Primeiro de Maio de 2021, Dia dos Trabalhadores, para prometer buscar a revogação da emenda 81.
"Quando o momento se fizer oportuno, melhor, juntamente com a [então ministra da Agricultura] Tereza Cristina, que está do meu lado aqui, nós devemos sim rever a emenda constitucional 81, de 2014. Nós precisamos alterar isso que foi feito em 2014, tornando vulnerável a questão da propriedade privada", afirmou em um pronunciamento, em vídeo, na 86ª edição da Expozebu, em Uberaba (MG).
E, em 7 de dezembro do mesmo ano, ele aproveitou um evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), para criticar a fiscalização na produção da carnaúba no Ceará e o combate ao trabalho escravo.
Detalhe: naquele momento, a última inspeção a condições de trabalho escravo na carnaúba cearense havia resgatado nove pessoas alojados entre porcos e fezes de animais e humanas. "Não havia condições mínimas de vivência naquele lugar", afirmou Daniel Arêa Barreto, que coordenou a fiscalização no município de Granja (CE).
Trabalhadores alojados com porcos e fezes de animais e de gente
Os trabalhadores cozinhavam com um fogareiro em meio aos dejetos e lixo acumulado. Não havia energia ou instalações sanitárias. Quando a água disponibilizada acabava, eles tinham que caminhar três quilômetros até um poço.
"Há pouco, um telefonema do interior do Ceará. Um cabra que ligou para alguém lá da Presidência, passou o telefone para mim. 'Acabei de ser multado aqui, eu estava com meu pessoal colhendo folha de carnaúba, que serve para cera, entre outras coisas. Chegou o MP do Trabalho e largou meia dúzia de multas em cima de mim", disse Bolsonaro.
"Multou por quê? Porque não tenho banheiro químico. Eu tô a 45ºC a temperatura aqui e obviamente não tenho banheiro químico. O cara vai deixar de colher a folha ali, andar 500 metros, fazer um xixi e voltar? Meteram a caneta no cara. Também uma mesinha feita de forma rústica, com madeira da região, para servir o almoço. Não estava adequada aquela mesa. Também a questão do dormitório, o pessoal dormia em uma barraca. Multa em cima dele."
Mais uma vez, o presidente tentou aliviar para os lados dos empregadores flagrados, levando a crer que irregularidades trabalhistas mais simples configuraram trabalho análogo ao de escravo e podem levar ao confisco da fazenda - interpretação que não encontra respaldo na lei.
O Ministério do Trabalho informou à coluna que a falta de um banheiro químico ou de uma mesa de refeições adequada não configura esse crime, mas um pacote de infrações gravíssimas sim, como as encontradas em Bento Gonçalves.
Já em outubro de 2022, após sucessivos cortes no orçamento da fiscalização trabalhista, não havia mais verbas garantidas para equipes do Ministério do Trabalho apurarem denúncias de trabalho escravo em locais como Minas Gerais. A falta de recursos afetou principalmente as operações de campo, em especial no âmbito rural.
Com isso, denúncias recebidas já não estavam sendo verificadas pelos servidores. Em um dos casos, cerca de 35 trabalhadores que atuavam na colheita de alho estariam tendo seus direitos violados pelo empregador. O relato "traz elementos que apontam para trabalho escravo", diz, mas não havia verbas para mobilizar uma equipe até o local e checar as informações.
Bolsonaro não quis assinar compromisso contra a escravidão
Em reuniões ao longo de outubro, a ordem expressa era para que fossem cortados os gastos com diárias de viagens, combustível, manutenção de veículos. "Estão paralisadas todas as operações de inspeção do trabalho que dependem de viagens", resumiu, na época, um auditor-fiscal em condição de anonimato na época. A informação foi confirmada por outros dois servidores.
Com a denúncia tornada pública, acabaram sendo garantidos. Minas Gerais é um dos estados que mais realizam fiscalizações trabalhistas e vem sendo o recordista em resgates de trabalhadores, segundo dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT).
Nas eleições do ano passado, os candidatos Lula, Ciro Gomes, Simone Tebet, Soraya Thronicke, Vera Lúcia, José Maria Eymael e Léo Péricles aderiram à Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo, afirmando que estabeleciam como prioridade o combate a esse crime, caso fossem eleitos.
O documento é elaborado por 16 entidades que organizam o compromisso desde 2006, entre elas associações de magistrados, de procuradores e de auditores fiscais, confederações de trabalhadores, a Comissão Pastoral da Terra, a Repórter Brasil e a Organização Internacional do Trabalho.
Bolsonaro não quis assinar.