Leonardo Sakamoto

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Opinião

Crianças são mais estupradas pela família em casa; escola é um porto seguro

A maioria dos casos de estupros de crianças e adolescentes até 13 anos é cometida por familiares (64,4%) ou algum conhecido (21,6%), principalmente na própria residência (71,6%) das vítimas. Ou seja, pelas pessoas com as quais elas deveriam se sentir mais protegidas e no local que, em tese, consideram o mais confortável.

Os dados fazem parte do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, divulgado nesta quinta (20), que traz um retrato da violência brasileira no ano passado. Ao contrário do imaginário popular, que coloca a rua como o local mais perigoso, as vias públicas respondem por apenas 6,8% dos casos de estupro de crianças, seguidas por escolas (2,6%), hospitais (0,8%), áreas rurais (3,3%) e outros locais (14,8%).

Isso desmente a falsa ideia vendida por grupos fundamentalistas religiosos e extremistas de direita que o perigo vem daquilo que é de fora do círculo de segurança. Em outras palavras, que o "porto seguro" é a família e a casa, enquanto o risco está nos professores, nos desconhecidos e até em exposições de arte.

Pelo contrário: apesar de escolas serem frequentemente atacadas pela educação sexual (o que pode conscientizar estudantes e ajuda-los a identificar e denunciar casos de abuso), ainda assim são muitas vezes o único porto seguro real para crianças. Sim, elas são palco de outras formas de violências, mas também o local onde os pequenos podem encontrar acolhimento contra familiares que os abusam.

Enquanto 53,3% dos casos de estupro de maiores de 14 anos ocorre entre às 18h e às 5h59, 65,1% dos que envolvem pessoas de até 13 anos acontecem entre às 6h e às 17h59 - período em que mães ou cuidadores estão, normalmente, fora, trabalhando.

"Quando falamos dos estupros e estupros de vulnerável que ocorreram em 2022, estamos falando de um tipo de violência essencialmente intrafamiliar, que acontece em casa, durante o dia, e que tem como principais vítimas pessoas vulneráveis. Esses são fatores que tornam o enfrentamento a esse tipo de violência sexual extremamente desafiador", afirma o relatório.

Segundo o Anuário, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país registrou o maior número de estupros da história, com 74.930 vítimas, um aumento de 8,2% em relação a 2021. Desses, 56.820 tem 13 anos ou menos. Das vítimas, 10,4% eram bebês e crianças com idade entre zero e 4 anos, 17,7% tinham entre 5 e 9 anos e 33,2% entre 10 e 13 anos.

Fundamentalistas dificultam aborto legal em crianças estupradas

A reação violenta de grupos fundamentalistas diante do aborto realizado por uma menina de dez anos estuprada pelo tio lembrou ao Brasil que apesar de artistas e suas exposições terem sido falsamente acusados de promoverem violência sexual contra crianças, ela ocorre predominantemente no seio da própria família. Com igrejas passando pano, ao menos nos casos de grande repercussão ou quando isso envolve padres e pastores.

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O caso envolveu uma menina de São Mateus (ES). Após ter sido sistematicamente estuprada por seu tio desde os seis anos de idade, ela quase foi impedida de realizar o aborto garantido por lei e pela Justiça.

Na linha de frente contra a dignidade da criança estava o arcebispo de Olinda e Recife, Antonio Fernando Saburido, que defendeu que a gravidez continuasse a despeito do risco de vida e da violência sofrida. "Essa criança tem sim condições de sobreviver", afirmou, esquecendo que obstetrícia não é disciplina da formação em teologia.

Deve ser uma das exigências do cargo. Pois, em 2009, o então arcebispo de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, criticou o aborto realizado em uma menina de nove anos, grávida de gêmeos, após ter sido estuprada desde os seis anos pelo padrasto. "Quem aprovou, quem realizou esse aborto, incorreu na excomunhão", disse.

Além da igreja, o então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foi acusado de pressionar a família da criança a desistir do aborto. Ela não conseguiu realizar o procedimento em seu estado, tendo que viajar para Recife, em Pernambuco - onde enfrentou manifestantes que ameaçavam ela e os médicos que interromperam a gravidez.

O problema maior não era uma frágil menina de dez anos carregar o fruto de estupro pelo tio porque sua família e a sociedade falharam com ela, mas ela querer uma vida como qualquer criança de sua idade.

Por vezes, denúncias são soterradas em montanhas de silêncio para manter as aparências familiares. Isso quando são levadas a sério. Assim, a vítima é obrigada a conviver com a dor. A própria senadora Damares Alves afirmou ter sido vítima de odiosos estupros por um pastor próximo da família quando criança.

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O que fazer quando o porto seguro é, na verdade, o local de risco? E quando as pessoas que teriam que dar afeto e amparo são aquelas que condenam a uma vida de sofrimento? Difícil responder quando você tem apenas dez anos e percebe que muita gente poderosa vê você como um vaso e não como um ser humano.

Mas os adultos podem ajudar, garantindo que o Estado tenha instituições e políticas fortes para proteger os mais vulneráveis. E que a inação de servidores públicos, médicos, procuradores e juízes seja punida pela lei.

Discutir o assunto abertamente, contudo, apontando quem comete a violência e aonde ela ocorre, é o primeiro passo para ela sair da invisibilidade. Isso ajuda a reconhecer os problemas reais dos espantalhos erguidos por extremistas.

Em 2017, milícias digitais promoveram o ódio tanto contra a exposição Queemuseum, que estava no Santander Cultural, em Porto Alegre, quanto sobre uma performance envolvendo nu artístico, no Museu de Arte Moderna, em São Paulo. Políticos e religiosos surfaram nos protestos, acusando ambos de promoverem a violência sexual com a anuência de educadores - apesar de não haver nada nesse sentido nas obras.

Não há tem notícia que artistas em museus estuprem crianças. O mesmo não pode se dizer de certos pais, padrastos, tios, primos, avôs em casa.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL