Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Chacina no Guarujá copia ação miliciana que troca Justiça por vingança

Após a morte do soldado Patrick Bastos Reis por criminosos, o Guarujá (SP) foi palco de uma chacina policial que registrou, até agora, oito mortos (segundo o governador Tarcísio de Freitas) e dez mortos (segundo a Ouvidoria da polícia), além de relatos de tortura, no final de semana. Ao que tudo indica, temos mais um episódio da República Miliciana do Brasil, na qual o poder público troca a Justiça pelo justiçamento, mandando recados na forma de cadáveres.

Apontado como suspeito pela morte, Erickson David da Silva, o "Deivinho", se entregou à polícia.

Claro que o assassinato de Patrick não pode ficar impune. Mas Justiça seria investigar rapidamente a morte do agente de segurança a fim de identificar o criminoso, prendê-lo, processá-lo, julgá-lo e, confirmada a sua culpa, sentenciá-lo e executar a pena. Já a vingança vem como um porrete e não pergunta o nome, só verifica o endereço. E, desta vez, foi o CEP do Guarujá.

O modus operandi é conhecido. Tanto que, após a morte de policiais por traficantes, comunidades ficam em pânico esperando por execuções de moradores em um número muito maior.

Como esquecer o massacre de Maio de 2006, quando mais de 500 pessoas, a maioria de jovens, negros, pobres e moradores de periferia foram mortas no estado de São Paulo. Organizações sociais afirmam que a responsabilidade foi de policiais e grupos de extermínio ligados a eles como retaliação a ataques do PCC, que vitimaram policiais.

Isso não está restrito a São Paulo, mas se repete há décadas no Brasil. Por exemplo, o elemento de vingança estava presente na chacina do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), em novembro de 2021, após a morte de um PM. Mas também nas de Vigário Geral [agosto de 1993, 21 mortos] e na da Candelária [julho de 1993, oito crianças e adolescentes mortos].

Exigir que a polícia não mate indiscriminadamente não é passar pano para bandido, mas garantir que ela siga a lei. Para evitar que acredite estar acima dela.

Sessões de justiçamento se contrapõem à ideia de Justiça e do que está previsto na Constituição Federal de 1988. Mas se encaixam perfeitamente na sociedade miliciana que vem sendo construída no Brasil e contou com o apoio do ex-presidente da República.

E em uma sociedade miliciana não há suspeitos, só culpados, que precisam ser punidos.

Continua após a publicidade

Logo após a Chacina do Jacarezinho, na qual 27 moradores e um agente foram mortos em uma ação violenta do poder público do Rio no dia 6 de maio de 2021, o delegado Felipe Curi, do Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE), afirmou em coletiva à imprensa: "Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante".

Cinco meses depois, o Ministério Público discordou, apresentando denúncia contra policiais por execução e manipulação da cena do crime.

Neste mês, o mesmo argumento foi usado pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, estado governado por Jerônimo Rodrigues (PT), em uma nota sobre os dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em seu anuário estatístico. Eles apontaram que o Estado foi a unidade da federação campeã em mortes decorrentes de intervenção policial em 2022, com 1.464 óbitos ou 23% de todo o país.

"A SSP destaca ainda que não coloca o homicídio, latrocínio ou lesão dolosa seguida de morte praticado contra um inocente, na mesma contagem dos homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos, mortos em confrontos durante ações policiais", diz a nota. Ou seja, se morreu durante uma operação policial é "homicida, traficante, estuprador, assaltante, criminoso".

A visão miliciana faz da Justiça algo desnecessário. Porque a própria polícia, cuja função limita-se a investigar e prender quem comete crimes, também assume o papel de acusar, julgar e executar.

E coloca o agente de segurança acima da Constituição para cumprir essa tarefa. O que justificaria o "excludente de ilicitude", que daria a policiais a garantia de imunidade em mortes causadas por eles enquanto vestem o uniforme. A proposta foi defendida por Bolsonaro, mas também pelo senador Sergio Moro, quando seu ministro da Justiça e da Segurança Pública.

Continua após a publicidade

Essa cultura antidemocrática - que visa a escantear instituições, como o devido processo legal - é anterior ao bolsonarismo, mas se alimenta ferozmente dele, feito uma porca grande e gorda que guincha alucinada para a presunção de inocência.

A operação policial no Guarujá tem indícios de uso excessivo e desproporcional da força e conduta ilegal dos agentes de segurança pública. Por isso, é necessária uma investigação séria e independente, e não afagos por parte do governador Tarcísio de Freitas à corporação.

A polícia tem o direito de se defender e o dever de defender a população. Mas em ações norteadas pela vingança não morrem apenas bandidos que atiravam em agentes de segurança, mas também pessoas desarmadas e rendidas ou que não tinham nada a ver com a história.

Produzir oito ou dez mortos por conta de um assassinato de um policial não mostra o uso de inteligência, mas de métodos dos próprios criminosos que a polícia diz combater. E todo mundo pode agir como criminoso, mas como agente público de segurança só quem é competente e bem treinado para tanto.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL