Leonardo Sakamoto

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Opinião

Livro de Tenório é censurado por ousar (como a Vai-Vai) criticar a polícia

Não é o uso de expressões que seriam impróprias para menores de 18 anos que está levando o livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, a ser censurado nas escolas públicas por governos alinhados ao bolsonarismo, como Goiás, Paraná e Mato Grosso do Sul. Essa é a desculpa. O que incomoda a direita é a crítica à violência policial.

A justificativa dada pela área de educação das gestões estaduais é o uso de termos que não deveriam estar em uma obra para crianças e trechos que descrevem o sexo.

"Alegre-se com a esposa da sua juventude. Gazela amorosa, corça graciosa, que os seios de sua esposa sempre o fartem de prazer, e sempre o embriaguem os carinhos dela." Ficou chocado? Pois o trecho não está em "O Avesso da Pele", mas na Bíblia, mais especificamente no livro de Provérbios, capítulo 5, versículos 18 e 19. Não há notícia de que ameaças tenham chegado a Salomão.

Isso sem mencionar que o mesmo grupo que está bradando horrorizado acha normal levar os filhos em uma micareta eleitoral, em 7 de setembro de 2022, em que Bolsonaro ficou gritando que ele era "imbroxável".

Contudo, a questão não é o vocabulário da vida real presente na obra de ficção, com o qual Tenório, colunista do UOL, ganhou o Prêmio Jabuti - o mais importante da literatura brasileira, em 2021. O problema é que "O Avesso da Pele" conta a história de dois homens negros, um pai e um filho, que sofrem com o racismo estrutural. O pai é morto, vítima de violência policial em Porto Alegre - fiquem tranquilos que isso não é spoiler.

Não é novidade autores que escrevem sobre o naco da polícia que mata serem alvo de ataques.

Um dos maiores exemplos é a perseguição sofrida por Caco Barcellos, quando lançou o fundamental livro-reportagem "Rota 66 - A História da Polícia que Mata". O próprio Tenório já recebeu ameaças. Mas, agora, parece que uma parte da extrema direita está disposta a fazer tudo para atropelar a liberdade de expressão em nome da defesa da violência como método policial.

Outro caso recente foi o desfile da escola de samba Vai-Vai, em São Paulo, na noite de 10 de fevereiro, que contou com uma ala que retratou a tropa de choque da PM paulista com traços demoníacos com o objetivo de fazer uma crítica à violência policial. Foi duramente atacada por delegados e políticos de extrema direita.

"Capítulo 4, Versículo 3 - da rua e do povo, o hip hop: um manifesto paulistano" foi o tema escolhido pela Vai-Vai, prestando uma homenagem ao álbum "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais. Ou seja, a escola estava falando da violência policial na década de 1990 - o álbum é de 1997. Mas a carapuça serviu para muita gente.

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O grupo que brada pela "liberdade" de atacar o Estado Democrático de Direito e, depois, clama por anistia é o mesmo que defende o recolhimento de livros e o ataque a escolas de samba por críticas sobre a violência que aflige a vida dos negros e pobres.

A polícia é uma instituição fundamental para a vida em sociedade, mas tentar vender a ideia de que seus membros não cometem excessos e delitos não é só forçar a amizade. É perigoso, autoritário, ditatorial.

No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos pelo governo. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por ousarem pensar diferente da maioria.

A Alemanha "purificou pelo fogo" as "ideias imundas" deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar.

A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu. E hoje vemos muitos se acovardarem diante de ondas intolerantes e abusivas frente a críticas a obras culturais que tratam da violência do braço armado do Estado brasileiro.

Com isso, o país vai criando sua própria fogueira. Se não fizermos nada, ela promete ser grande.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL