Leonardo Sakamoto

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Opinião

Rebeca lembra que Brasil será ouro quando negras tiverem chance dos brancos

Quem não está morto por dentro celebrou o ouro, a prata e o bronze de Rebeca Andrade nestas Olimpíadas, que a transformaram na nossa mais premiada atleta olímpica de todos os tempos. É uma história de técnica e dedicação, mas também de superação. Negra, pobre, periférica, filha de empregada doméstica, criada sem o pai, andava duas horas a pé para treinar no ginásio da Vila Tijuco, em Guarulhos, segunda cidade mais populosa do Estado de São Paulo, até que seu irmão conseguiu uma bicicleta para lhe dar carona.

Ela é ouro, mas o Brasil, como país, ainda fica devendo na função de garantir as mesmas oportunidades a todos, e segue fora do pódio.

Pois antes que circulem discursos de que qualquer pessoa pode chegar lá, dependendo apenas de si mesmo, vale fazer perguntas: quantas Rebecas deixaram de desenvolver seu potencial porque faltou apoio por parte do Estado? Quantas Rebecas surgiriam se o Brasil fosse um grande projeto de educação esportiva, tal qual aquele que ela encontrou? Por que grande parte da iniciativa privada adora colar sua imagem apenas aos vencedores do presente, mas investe menos do que poderia na aposta de novas Rebecas? E por que não oferecemos condições para produzir Rebecas com mais frequência?

O apoio ao esporte de base aumentou ao longo das décadas, o que tem se traduzido em resultados em campeonatos mundiais e Olimpíadas — apesar dos quatro anos sinistros de queda no apoio a políticas públicas que vivemos nessa e em tantas outras áreas entre 2019 e 2022. Mas ainda estamos longe dos países que investem estruturalmente no esporte, como estamos longe dos países que acreditam na educação e na ciência.

Alguns que estão lendo este texto devem estar reclamando que estou politizando o esporte. Ignoram que não há nada mais político do que uma mulher negra e pobre ter muito menos oportunidades no esporte e na vida ao nascer do que um homem branco e rico. Como sempre digo aqui, no Brasil, há meritocracia. Mas ela é eminentemente hereditária.

Aliás, o uso em abundância da palavra "meritocracia" esquece que o sucesso é uma somatória da atuação individual com o contexto em que a pessoa está inserida — que pode ser fértil ou não para talentos emergirem. Não adianta, por exemplo, criar um currículo de ensino médio inovador se a comunidade em que a escola está inserida continuar miserável e violenta. Esse currículo é ótimo para as famílias cujos filhos estudam no "vale dourado" de São Paulo, mas inútil aos que não têm nem papel higiênico no local de aprendizagem.

Pois a ideia de que qualquer um pode chegar lá, bastando querer, acaba sendo usada como uma verdade suprema e servindo a quem ignora que as pessoas não tiveram acesso aos mesmos direitos para começarem suas caminhadas individuais e que, portanto, partem de lugares diferentes. Uns mais à frente, outros bem atrás.

Achar que um estudante no interior do país que comia bolachas de lama, brincava com ossinhos de zebu, andava dez quilômetros por dia para chegar à escola e ainda trabalhava no matadouro do município para ajudar na renda da família parte, na corrida da vida, com igualdade de condições com outro que frequenta uma escola com laboratórios que simulam gravidade zero e possui professores com pós-doutorado em Oxford e são remunerados à altura, e viaja para um lugar diferente todos os anos a fim de conhecer o mundo e não precisará trabalhar até o final da pós-graduação, é um tanto quanto irracional.

Os dois podem chegar lá. Mas se o segundo caso cruza a linha de chegada mais vezes, o primeiro é um a cada milhão. Por isso, histórias como as de Rebeca são contadas e recontadas à exaustão: primeiro, nós gostamos de falar de vitórias na adversidade e, segundo, são histórias úteis para convencer os outros que, se um consegue, todos podem, sem que o Estado faça sua parte.

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Ou seja, sem o mínimo constitucional de gastos obrigatórios em áreas como educação e saúde.

Dessa forma, jogamos a responsabilidade de erros históricos não compensados e de uma desigualdade crônica de condições nas próprias pessoas que terão que vencê-las. Sim, por isso Rebeca venceu, apesar do contexto em que estava. O nosso obrigado por ela deveria ser dobrado por conta disso.

E esse discurso é tão bem contado que, não raro, é apoiado por pessoas que, apesar de largarem em desvantagem, venceram. "Tive uma infância muito pobre e venci sozinho mesmo assim. Então, se pude, todos podem." Bem, parabéns a você, de verdade. Mas pense dessa forma: se ao invés de achar que todos têm que comer o pão que o diabo amassou como você comeu, não seria melhor pensar um mundo em que isso não fosse preciso? Porque o sofrimento não forma o caráter, apenas ensina o lugar de cada tijolo no muro.

Por isso, como já disse aqui, em tempos de Olimpíadas, é importantíssimo nos lembrarmos da caminhada e não apenas criticarmos os resultados finais, como muitos fazem. Para que lembremos que nossos atletas não existem a cada quatro anos. Sobrevivendo na adversidade e lutando pelo seu melhor, eles nos trazem orgulho, não só pelo que conquistam, mas pelo que são.

Por fim, há certas coisas que não podemos nunca esquecer. Em setembro de 2018, durante a campanha eleitoral, o então candidato a vice de Jair Bolsonaro, e hoje senador, general Hamilton Mourão, afirmou que uma família pobre criada apenas pela mãe se transforma em uma "fábrica de elementos desajustados" que tendem a ingressar no mundo do crime. A "fábrica de elementos desajustados" da empregada doméstica Rosa Santos, mãe solo de oito, trouxe para o Brasil hoje uma medalha de ouro no solo da ginástica artística.

A experiência humana também tem mostrado que mulheres apresentam um posicionamento mais crítico ao discurso do uso da violência para a solução dos problemas do que os homens e são mais racionais e estáveis na gestão de recursos - tanto que em programas de moradia popular e transferência de renda no Brasil, o registro familiar é feito em seu nome.

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Quem dera se a participação delas na vida política do país fosse maior, ao menos paritária à sua representação na sociedade. Provavelmente, teríamos mais "desajustadas" como Rebeca e menos desajustados como homens violentos viciados em rachadinha.

Há um papel determinado para quem nasce negra, pobre e periférica no Brasil que a parte mais rica da população insiste em ver cumprido, ainda mais se vier de família sem "homem em casa". Não raro, o termo "desajustada" tem sido usado para definir pessoas que cismam em não cumprir o destino reservado pelos "costumes" e as "tradições" à sua classe social, à cor de pele, à família de onde veio. "Quem essa menina pensa que é?", vociferam alguns internautas quando uma mulher negra se sobressai por aí. No caso da filha de Rosa, ela é a melhor do mundo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL