Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Empresa que paga bem não culpa Bolsa Família por falta de mão de obra

Viralizou um cartaz relacionando o "pessoal do Bolsa Família" à falta de funcionários de uma unidade da rede de restaurantes Freshouse em um shopping center de São Paulo. A administração da empresa pediu desculpas "a qualquer pessoa que tenha se sentido ofendida", mas o caso é mais um que mostra preconceito social e desconhecimento da economia. Melhores condições é que devem atrair empregados, não um aumento de vulnerabilidade causado pela redução de programas sociais.

"Senhores clientes, por favor, tenham paciência, o pessoal do bolsa família e da cervejinha' não quer trabalhar, estamos com muita falta [de] funcionários. Obrigado", disse o aviso.

A esmagadora maioria dos beneficiários do Bolsa trabalha sim e não quer ficar na miséria, mas precisa de uma mãozinha para viver enquanto isso não é possível - afinal, nem todos tiveram acesso à herança ou a oportunidades de educação de qualidade. E já está provado que a transferência condicionada à frequência escolar e à vacinação, critérios para participação no programa, eleva a qualidade de vida.

Os que preferem viver na pobreza, recebendo benefício, ao invés de buscarem serviço são um ínfimo grupo. Vale lembrar que o valor médio do Bolsa pago em fevereiro foi de R$ 671,81, o que ajuda, mas não resolve.

O IBGE divulgou, no final de fevereiro, que a taxa de desemprego no país foi de 6,5% no trimestre encerrado em janeiro, o que é a menor para esse período desde 2014, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Essa taxa baixa impacta no custo da mão de obra, mais do que os programas sociais.

De uma maneira, geral, se está faltando gente para determinadas funções, o setor privado precisa melhorar os salários e condições que paga à base da pirâmide. E não exigir que eles aceitem trabalhar por qualquer coisa ou cortar a grana que os mais pobres ganham para não passar fome.

(Ao mesmo tempo, o poder público deve combater mais fortemente a inflação, principalmente dos alimentos, que corrói o poder de compra e a qualidade de vida dos trabalhadores, ajudando a reduzir salários já insuficientes.)

Justiça seja feita, esse discurso do balcão da rede de restaurantes é frequente em outros ambientes empresariais.

O empresário Rubens Menin, presidente do Conselho de Administração da MRV, defendeu mudanças no Bolsa Família e do BPC para, segundo ele, aliviar as contas públicas e aumentar a força de trabalho disponível em um evento organizado por um banco de investimentos em 27 de fevereiro. Reconheceu a importância do programa em um país com pobreza extrema, mas diz que o país precisa de "consciência fiscal".

Continua após a publicidade

Mas isso não pode vir separado da "consciência social", caso contrário, teremos aumento da vulnerabilidade dos trabalhadores, o que acaba os tornando vítimas da superexploração. E o governo federal já resgatou trabalhadores em condições análogas às de escravo em obras sob responsabilidade da MRV.

Representantes do setor da construção civil, entre eles Menin, divulgaram uma carta na qual propõem mudanças no programa sob a justificativa de que uma suposta "dependência voluntária" prejudica a oferta de mão de obra. Ou seja, para eles, o povo que ganha o benefício evita trabalhar na formalidade.

Um trabalhador CLT pode sim receber o Bolsa Família desde que cumpra com os requisitos pré-estabelecidos pelo governo. Ele perde o acesso quando passa a receber mais do que o limite do programa, o que, para ele, é uma boa notícia. Há um projeto tramitando no Congresso para garantir que o beneficiário não perca o Bolsa Família caso tenha aumento de renda por um período curto de tempo, devido a um contrato de safra ou temporário.

A ideia de que o Bolsa provoca falta de mão de obra foi bombada por políticos por anos a fio. Por exemplo, quando deputado federal, o ex-presidente Jair Bolsonaro vinculou o recebimento do programa à vagabundagem.

"O Bolsa Família é uma mentira, você não consegue uma pessoa no Nordeste para trabalhar na sua casa. Porque se for trabalhar, perde o Bolsa Família", afirmou em entrevista à Record News, em 2012.

"O cara tem três, quatro, cinco, dez filhos e é problema do Estado, cara. Ele já vai viver de Bolsa Família, não vai fazer nada. Não produz bem, nem serviço. Não produz nada. Não colabora com o PIB, não faz nada. Fez oito filhos, aqueles oito filhos vão ter que creche, escola, depois cota lá na frente. Para ser o que na sociedade? Para não ser nada", disse em entrevista ao colunista do UOL Carlos Juliano Barros, em 2015.

Continua após a publicidade

Uma preconceituosa matriz de interpretação do mundo considera que o programa é uma "fábrica inútil de produtores de filhos" porque é assim que ele e uma parcela do país enxergam os pobres: um grupo interesseiro que, diante da oferta de uns caraminguás, prefere parar de trabalhar.

Enquanto não abandonarmos esse tipo de pensamento, continuaremos sendo apenas o país de um futuro que nunca chega.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL