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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O 7 de setembro tem o fedor do cadáver insepulto da CPMI das Fake News

Colunista do UOL

06/09/2022 10h05

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Chegamos ao bicentenário da independência de forma melancólica, sem um imaginário de Brasil, de pátria, de brasilidade. Poder não admite vácuo. Colocaram um Bolsonaro Day no lugar do 7 de setembro.

Talvez o nosso país nem exista mais na cabeça de quem se rendeu de corpo e alma à política do "nós contra eles". Tanto o Gabinete do Ódio quanto o Gabinete do Amor Exigente plantaram uma ideia de não-nação, em que a identidade é definida pelos inimigos contra quem se pode tudo.

Não somos brasileiros. Somos antifascistas e, por isso, podemos utilizar todo o manual de práticas fascistas contra os fascistas para combater o fascismo. Afinal, somos bons e eles são maus.

Não somos brasileiros. Somos patriotas e, por isso, podemos pregar até eliminação física dos nossos compatriotas para garantir esse projeto de nação em que sobram apenas os bons. Nós, no caso, somos os bons. Maus são os outros.

Dois grupos patéticos, autoritários, truculentos e minoritários mas muito barulhentos tomaram a política do Brasil. E aceitamos ser reféns.

Não se discute qual o projeto de Brasil queremos, o que sonhamos para os brasileirinhos, o país que desejamos para as futuras gerações. Discutimos qual tese do bolsonarismo será dominante nos desfiles.

Uma empresa de armas lança um produto em edição comemorativa à independência do país. Como se já não fosse sintomático o suficiente, ainda dá desconto no fuzil.

Os apoiadores do atual presidente da república parecem divididos. Parte quer tocar fogo mesmo, atiçar os lobos solitários, incentivar quem vá a rua armado. É o bonde que defende a radicalização como forma de vitória eleitoral.

A outra parte defende mais comedimento. Transformar uma data cívica em Bolsonaro Day já seria o suficiente. Tamanha é a bagunça que esquecer o Brasil para fazer desfile em Copacabana e motociata a favor de um político já são coisas vistas como moderadas.

Muitos dos que dizem se opor a todo esse absurdo também não estão nem aí para um projeto nacional ou a nossa identidade brasileira. Parte da esquerda pegou ranço de tudo o que é nacional e cívico após a ditadura militar.

A solução foi importar uma identidade inventada, copiando os problemas das elites urbanas dos Estados Unidos e Europa. As tentativas de solução são copiadas de propagandas de banco, inclusivas e emocionantes.

Quando a ligação entre os que estão próximos é quebrada pela ilusão de laços entre os que são longínquos, temos terreno fértil para o autoritarismo. E aqui ele anda verdejante.

Temos um repeteco do ano passado na história do financiamento por empresários de caravanas partidárias do 7 de setembro. Só há uma diferença: o curioso fim dado às investigações sobre isso.

O cadáver da CPMI das Fake News está insepulto e a fedentina se espalha pelo Senado, pela Câmara e até pelo Palácio do Planalto. Rodrigo Pacheco precisa dar um destino ao morto, ou enterra ou ressuscita.

A solução curiosa foi não fazer uma coisa nem outra. Deixar o cadáver lá, apodrecendo a democracia, até que a legislatura acabe. Por que não se marca a apresentação do relatório final? Por que não se encerra de vez?

Não tenho as respostas, só um palpite. Do jeito que está, tudo ali vai para o arquivo na mudança de legislatura. O cadáver será enfiado embaixo do tapete espalhando o cheiro fétido, mas sem ser visto pela maioria.

É de interesse do país que isso tenha uma solução. Quando o Poder Legislativo se exime de suas responsabilidades, sabota o sistema de freios e contrapesos da República. No caso específico, sobrou tudo no colo do Judiciário.

Resolver questões do tipo requer amor pelo Brasil. Isso tem nos faltado, infelizmente. Em vez de nos sentirmos brasileiros, nos sentimos uma identidade política que guerreia contra demônios.

"Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos", disse Darcy Ribeiro em sua obra derradeira, "O Povo Brasileiro", de 1995.

O bicentenário era para ser da independência desse povo tão complexo, não de um político qualquer que o divida. Talvez na Copa do Mundo a gente reaprenda a se ver brasileiro, caso não dê briga por causa da camisa da seleção.

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