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Globo sustenta "heroísmo" de Aracy; "criação de mito", dizem historiadores
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Mario Teixeira e Jayme Monjardim, autor e diretor da série "Passaporte para Liberdade", finalmente se manifestaram sobre questionamentos feitos por dois respeitados historiadores a respeito do papel de Aracy de Carvalho (1908-2011) na emissão de vistos para judeus no consulado de Hamburgo no final dos anos 1930.
A minissérie vem sendo anunciada como "a história da brasileira que salvou a vida de centenas de judeus na Alemanha durante a 2ª Guerra Mundial". E mais: "Pouco conhecida em seu país de origem, foi uma heroína, inconformada com o regime nazista". Em oito episódios, o programa tem estreia programada para o dia 20.
Há 100 dias, em 1º de setembro, publiquei no UOL a síntese de um artigo de Fábio Koifman e Rui Afonso que coloca em dúvida o ponto mais central da narrativa da minissérie da Globo: o heroísmo atribuído a Aracy. Ela não era diplomata, mas funcionária contratada, e não tinha o poder de emitir vistos nem condições de adulterá-los.
Após se debruçarem sobre os arquivos do Ministério das Relações Exteriores e examinarem os vistos concedidos no período mais crítico de fuga de judeus da Alemanha, entre 1938 e 1939, Koifman e Afonso concluíram "que nenhum visto irregular ou qualquer ilegalidade foi praticada pelo serviço consular da representação brasileira em Hamburgo no período em que a ajuda humanitária a perseguidos judeus é atribuída".
Procurei a Globo desde então, sem nenhuma resposta. Vinte e quatro dias após a publicação do texto, a emissora anunciou que a série, originalmente intitulada "O Anjo de Hamburgo", passaria a se chamar "Passaporte para Liberdade".
O novo título, registrei na ocasião, atenua, um pouco, a intenção de apresentar Aracy como uma heroína, "o anjo de Hamburgo", e o foco passa a ser no significado que os vistos tiveram - permitiram que os judeus deixassem a Alemanha. O novo título, porém, incorre em outro erro, já que o consulado do Brasil em Hamburgo não emitia passaportes - apenas vistos - para os alemães.
Conforme reportagem de Nilson Xavier, publicada sábado (11) no site TV História, Mário Teixeira se disse surpreso com o questionamento dos historiadores. Disse o autor: "Essa teoria é desmentida pelo Museu do Holocausto (Yad Vashem), em Israel, que levanta uma documentação absolutamente profunda para conceder a honraria Justo Entre as Nações a uma pessoa. Essas questões são muito discutíveis, porque o próprio trabalho da Aracy foi além do que fazia um funcionário [do consulado]".
Mesmo concordando que a funcionária do consulado de Hamburgo não tinha o poder de emitir vistos, Teixeira disse que "a atuação da Aracy transcendeu tudo isso. Sua atuação como funcionária se transformou numa saga humanista em defesa do próximo, das pessoas".
Xavier reproduz a seguinte fala de Teixeira: "Tivemos acesso a incontáveis depoimentos de descendentes dos sobreviventes que narraram com muita emoção o que tinham ouvido de seus pais, avós e bisavós. Quando o governo de Israel faz uma pesquisa tão profunda sobre a atuação de uma pessoa que vai ser agraciada com esse título [Justo Entre as Nações] - que é tão caro a eles -, eles levantam tudo a respeito dessa pessoa. Eles precisam ter acesso a documentos, testemunhos, depoimentos pessoais. Aracy nem imunidade diplomática tinha: se ela fosse pega pelos nazistas, ela teria sido enforcada, guilhotinada".
Na verdade, os "Justos" são reconhecidos pela comissão dos justos do Yad Vashem e não pelo governo israelense exatamente. Essa informação está na página do museu na internet. No período em que os vistos foram concedidos (1938 e 1939), o regime nazista queria que os judeus deixassem a Alemanha. Logo, não faz sentido dizer que Aracy corria o risco de ser enforcada, mesmo que tivesse ajudado judeus.
Já Monjardim, classificou como uma "piada" o questionamento dos historiadores. "É lógico que não existem registros no consulado porque ela [Aracy] fazia isso de uma forma ilícita, escondida. Então não tem como existir provas a respeito disso". E acrescentou: "Eu estou muito tranquilo a respeito disso e eu acho que a maior prova são os próprios depoimentos das famílias dos sobreviventes".
Quem são os historiadores Koifman e Afonso
As dúvidas sobre o heroísmo de Aracy já eram conhecidas em 2018, quando a coprodução internacional da Globo com a Sony começou a ser produzida. Naquele ano, a jornalista Patricia Kogut publicou em sua coluna no jornal "O Globo" que Koifman e Afonso defendiam que "muito do heroísmo (atribuído à brasileira) é mito". Procurado por produtores da série, Koifman repetiu o alerta. A Globo ignorou os avisos.
Afonso e Koifman são reconhecidos especialistas neste assunto. O luso-canadense Afonso é autor de "Um Homem Bom", a história de Aristides de Sousa Mendes, o diplomata português que desafiou o ditador Antônio Salazar, salvou milhares de vidas do Holocausto e viveu seus últimos dias na miséria.
Já o brasileiro Koifman é autor, entre outros livros, de "Quixote nas Trevas", uma biografia de Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França, que emitiu de próprio punho centenas de vistos para judeus e não judeus que buscavam fugir da Europa durante a Segunda Guerra. Entre as pessoas salvas pelo diplomata estão o diretor teatral Zbignew Ziembinski e o produtor musical Oscar Oreinstein.
A análise sobre o papel de Aracy na concessão de vistos a judeus alemães é o tema do estudo "Os vistos concedidos no consulado do Brasil em Hamburgo: 1938-1939", recém-publicado no livro "Judeus no Brasil: História e Historiografia" (Garamond, 480 págs., R$ 80). Os nomes de todos que conseguiram vistos no local são conhecidos e estão reproduzidos no artigo. Esse fato coloca em questão o argumento de que houve emissão de vistos "secretos", irregulares, sem registro.
O reconhecimento no Museu do Holocausto
Mario Teixeira e Jayme Monjardim afirmam se fiar no título de "Justo entre as Nações" concedido a Aracy, em 1982, pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém. Trata-se de uma homenagem dada a não judeus que auxiliaram e salvaram, desinteressadamente e eventualmente se expondo a riscos, pessoas de origem judaica perseguidas pelo nazismo. O museu levou em consideração relatos de quatro pessoas que declararam ter obtido vistos para deixar a Alemanha no consulado do Brasil em Hamburgo. Os depoimentos consideram ter sido Aracy a responsável pela emissão dos vistos.
Em mais de um caso, embora o depoente tenha atribuído a emissão do visto ao consulado de Hambrugo, o visto na realidade foi concedido em outra cidade. No próprio dossiê do Yad Vashem que reúne os depoimentos que instrumentalizaram o reconhecimento de Aracy como "justa", aparece no relato de Margareth Levy que o casal Alfred e Margaret Jacobsberg e a família Tuch teriam sido ajudados pela auxiliar brasileira em Hamburgo. Entretanto, os vistos da família Jacobsberg foram concedidos em 1936 pelo Consulado do Brasil em Berlim. E o dos Tuch na Antuérpia.
Em seu depoimento, Margareth Levy também cita o nome da família Katzenstein na lista daqueles que teriam sido "salvos" por Aracy. Koifman e Afonso afirmam que o visto que uma senhora com este sobrenome recebeu em Hamburgo atendeu a uma ordem do Ministério das Relações Exteriores, no Brasil, e que o consulado em Hamburgo apenas obedeceu.
Os historiadores identificaram vários outros problemas no que chamam de "criação do mito".
Um casal, Max e Rosa Guggenheimer, procurou o consulado em março de 1939, portando um certificado providenciado pela filha Ruth, que residia no Brasil. O documento, emitido pelo governo brasileiro, garantia vistos ao casal. Porém, eles teriam sido informados por Aracy que o documento estava caduco. "O que, se de fato ocorreu, não correspondia à verdade", escrevem os historiadores. De acordo com o depoimento de Ruth, diante da insistência do pai, "que chorou um pouquinho", a brasileira se prontificou a ajudá-los e o visto permanente foi conseguido, o que fez com que a família considerasse Aracy responsável pelo sucesso da saída deles da Alemanha.
Outro ato de heroísmo atribuído à Aracy teria sido a exclusão da "origem étnica" (a letra "J", de judeu) dos candidatos a visto. "Nenhum dos judeus mencionados como 'salvos' pela atribuída ação humanitária ocorrida no Consulado de Hamburgo deixou de figurar nas listas de vistos concedidos a 'semitas'", asseguram os historiadores.
Na visão de Afonso e Koifman, o título de Justo atribuído pelo Yad Vashem a Aracy foi "um erro", dizem, causado pelo desconhecimento, naquele momento, da documentação que os dois encontraram posteriormente e pela "inconsistência dos testemunhos dados".
"Estas coisas - criações de mitos - acontecem quando não há coerência entre a memória e a história, no melhor dos casos", dizem.
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