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Mauricio Stycer

REPORTAGEM

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Globo sustenta "heroísmo" de Aracy; "criação de mito", dizem historiadores

Rodrigo Lombardi (como Guimarães Rosa) e Sophie Charlotte (como Aracy) em cena de "Passaporte para Liberdade" - Divulgação / Globo
Rodrigo Lombardi (como Guimarães Rosa) e Sophie Charlotte (como Aracy) em cena de "Passaporte para Liberdade" Imagem: Divulgação / Globo

Colunista do UOL

13/12/2021 07h01

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Mario Teixeira e Jayme Monjardim, autor e diretor da série "Passaporte para Liberdade", finalmente se manifestaram sobre questionamentos feitos por dois respeitados historiadores a respeito do papel de Aracy de Carvalho (1908-2011) na emissão de vistos para judeus no consulado de Hamburgo no final dos anos 1930.

A minissérie vem sendo anunciada como "a história da brasileira que salvou a vida de centenas de judeus na Alemanha durante a 2ª Guerra Mundial". E mais: "Pouco conhecida em seu país de origem, foi uma heroína, inconformada com o regime nazista". Em oito episódios, o programa tem estreia programada para o dia 20.

Há 100 dias, em 1º de setembro, publiquei no UOL a síntese de um artigo de Fábio Koifman e Rui Afonso que coloca em dúvida o ponto mais central da narrativa da minissérie da Globo: o heroísmo atribuído a Aracy. Ela não era diplomata, mas funcionária contratada, e não tinha o poder de emitir vistos nem condições de adulterá-los.

Após se debruçarem sobre os arquivos do Ministério das Relações Exteriores e examinarem os vistos concedidos no período mais crítico de fuga de judeus da Alemanha, entre 1938 e 1939, Koifman e Afonso concluíram "que nenhum visto irregular ou qualquer ilegalidade foi praticada pelo serviço consular da representação brasileira em Hamburgo no período em que a ajuda humanitária a perseguidos judeus é atribuída".

Procurei a Globo desde então, sem nenhuma resposta. Vinte e quatro dias após a publicação do texto, a emissora anunciou que a série, originalmente intitulada "O Anjo de Hamburgo", passaria a se chamar "Passaporte para Liberdade".

O novo título, registrei na ocasião, atenua, um pouco, a intenção de apresentar Aracy como uma heroína, "o anjo de Hamburgo", e o foco passa a ser no significado que os vistos tiveram - permitiram que os judeus deixassem a Alemanha. O novo título, porém, incorre em outro erro, já que o consulado do Brasil em Hamburgo não emitia passaportes - apenas vistos - para os alemães.

Conforme reportagem de Nilson Xavier, publicada sábado (11) no site TV História, Mário Teixeira se disse surpreso com o questionamento dos historiadores. Disse o autor: "Essa teoria é desmentida pelo Museu do Holocausto (Yad Vashem), em Israel, que levanta uma documentação absolutamente profunda para conceder a honraria Justo Entre as Nações a uma pessoa. Essas questões são muito discutíveis, porque o próprio trabalho da Aracy foi além do que fazia um funcionário [do consulado]".

Mesmo concordando que a funcionária do consulado de Hamburgo não tinha o poder de emitir vistos, Teixeira disse que "a atuação da Aracy transcendeu tudo isso. Sua atuação como funcionária se transformou numa saga humanista em defesa do próximo, das pessoas".

Aracy - IEB/ARQSHOAH/USP Image - IEB/ARQSHOAH/USP Image
Aracy de Carvalho, que foi casada com Guimarães Rosa, trabalhou no consulado do Brasil em Hamburgo na década de 1930
Imagem: IEB/ARQSHOAH/USP Image

Xavier reproduz a seguinte fala de Teixeira: "Tivemos acesso a incontáveis depoimentos de descendentes dos sobreviventes que narraram com muita emoção o que tinham ouvido de seus pais, avós e bisavós. Quando o governo de Israel faz uma pesquisa tão profunda sobre a atuação de uma pessoa que vai ser agraciada com esse título [Justo Entre as Nações] - que é tão caro a eles -, eles levantam tudo a respeito dessa pessoa. Eles precisam ter acesso a documentos, testemunhos, depoimentos pessoais. Aracy nem imunidade diplomática tinha: se ela fosse pega pelos nazistas, ela teria sido enforcada, guilhotinada".

Na verdade, os "Justos" são reconhecidos pela comissão dos justos do Yad Vashem e não pelo governo israelense exatamente. Essa informação está na página do museu na internet. No período em que os vistos foram concedidos (1938 e 1939), o regime nazista queria que os judeus deixassem a Alemanha. Logo, não faz sentido dizer que Aracy corria o risco de ser enforcada, mesmo que tivesse ajudado judeus.

Já Monjardim, classificou como uma "piada" o questionamento dos historiadores. "É lógico que não existem registros no consulado porque ela [Aracy] fazia isso de uma forma ilícita, escondida. Então não tem como existir provas a respeito disso". E acrescentou: "Eu estou muito tranquilo a respeito disso e eu acho que a maior prova são os próprios depoimentos das famílias dos sobreviventes".

Quem são os historiadores Koifman e Afonso

As dúvidas sobre o heroísmo de Aracy já eram conhecidas em 2018, quando a coprodução internacional da Globo com a Sony começou a ser produzida. Naquele ano, a jornalista Patricia Kogut publicou em sua coluna no jornal "O Globo" que Koifman e Afonso defendiam que "muito do heroísmo (atribuído à brasileira) é mito". Procurado por produtores da série, Koifman repetiu o alerta. A Globo ignorou os avisos.

Afonso e Koifman são reconhecidos especialistas neste assunto. O luso-canadense Afonso é autor de "Um Homem Bom", a história de Aristides de Sousa Mendes, o diplomata português que desafiou o ditador Antônio Salazar, salvou milhares de vidas do Holocausto e viveu seus últimos dias na miséria.

Já o brasileiro Koifman é autor, entre outros livros, de "Quixote nas Trevas", uma biografia de Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França, que emitiu de próprio punho centenas de vistos para judeus e não judeus que buscavam fugir da Europa durante a Segunda Guerra. Entre as pessoas salvas pelo diplomata estão o diretor teatral Zbignew Ziembinski e o produtor musical Oscar Oreinstein.

A análise sobre o papel de Aracy na concessão de vistos a judeus alemães é o tema do estudo "Os vistos concedidos no consulado do Brasil em Hamburgo: 1938-1939", recém-publicado no livro "Judeus no Brasil: História e Historiografia" (Garamond, 480 págs., R$ 80). Os nomes de todos que conseguiram vistos no local são conhecidos e estão reproduzidos no artigo. Esse fato coloca em questão o argumento de que houve emissão de vistos "secretos", irregulares, sem registro.

O reconhecimento no Museu do Holocausto

Mario Teixeira e Jayme Monjardim afirmam se fiar no título de "Justo entre as Nações" concedido a Aracy, em 1982, pelo Museu do Holocausto, em Jerusalém. Trata-se de uma homenagem dada a não judeus que auxiliaram e salvaram, desinteressadamente e eventualmente se expondo a riscos, pessoas de origem judaica perseguidas pelo nazismo. O museu levou em consideração relatos de quatro pessoas que declararam ter obtido vistos para deixar a Alemanha no consulado do Brasil em Hamburgo. Os depoimentos consideram ter sido Aracy a responsável pela emissão dos vistos.

Em mais de um caso, embora o depoente tenha atribuído a emissão do visto ao consulado de Hambrugo, o visto na realidade foi concedido em outra cidade. No próprio dossiê do Yad Vashem que reúne os depoimentos que instrumentalizaram o reconhecimento de Aracy como "justa", aparece no relato de Margareth Levy que o casal Alfred e Margaret Jacobsberg e a família Tuch teriam sido ajudados pela auxiliar brasileira em Hamburgo. Entretanto, os vistos da família Jacobsberg foram concedidos em 1936 pelo Consulado do Brasil em Berlim. E o dos Tuch na Antuérpia.

Em seu depoimento, Margareth Levy também cita o nome da família Katzenstein na lista daqueles que teriam sido "salvos" por Aracy. Koifman e Afonso afirmam que o visto que uma senhora com este sobrenome recebeu em Hamburgo atendeu a uma ordem do Ministério das Relações Exteriores, no Brasil, e que o consulado em Hamburgo apenas obedeceu.

Os historiadores identificaram vários outros problemas no que chamam de "criação do mito".

Um casal, Max e Rosa Guggenheimer, procurou o consulado em março de 1939, portando um certificado providenciado pela filha Ruth, que residia no Brasil. O documento, emitido pelo governo brasileiro, garantia vistos ao casal. Porém, eles teriam sido informados por Aracy que o documento estava caduco. "O que, se de fato ocorreu, não correspondia à verdade", escrevem os historiadores. De acordo com o depoimento de Ruth, diante da insistência do pai, "que chorou um pouquinho", a brasileira se prontificou a ajudá-los e o visto permanente foi conseguido, o que fez com que a família considerasse Aracy responsável pelo sucesso da saída deles da Alemanha.

Outro ato de heroísmo atribuído à Aracy teria sido a exclusão da "origem étnica" (a letra "J", de judeu) dos candidatos a visto. "Nenhum dos judeus mencionados como 'salvos' pela atribuída ação humanitária ocorrida no Consulado de Hamburgo deixou de figurar nas listas de vistos concedidos a 'semitas'", asseguram os historiadores.

Na visão de Afonso e Koifman, o título de Justo atribuído pelo Yad Vashem a Aracy foi "um erro", dizem, causado pelo desconhecimento, naquele momento, da documentação que os dois encontraram posteriormente e pela "inconsistência dos testemunhos dados".

"Estas coisas - criações de mitos - acontecem quando não há coerência entre a memória e a história, no melhor dos casos", dizem.