Prejuízo bilionário e 'pirataria' colocam Correios na mira do TCU
Empresas de envio com contrato com os Correios vendem serviços postais pelo Brasil em um modelo de negócios que especialistas, funcionários da estatal e franqueados veem como ilegal.
Essas empresas usam os serviços da própria estatal, sem ter passado por concorrência pública, e conseguem oferecer preços mais vantajosos que os praticados nas agências oficiais.
O prejuízo gerado no segmento de encomendas em 2023 por esses "concorrentes" foi estimado em R$ 1 bilhão, segundo fontes da área financeira dos Correios que pediram para não serem identificadas.
Esse modelo surgiu em 2019, quando a estatal passou a fechar contratos milionários com empresas criadas exclusivamente para revender os serviços dos Correios.
A promessa desses intermediários, chamados integradores, era comprar um grande volume de encomendas para adquirir com descontos etiquetas de Sedex e outras modalidades.
Esses descontos eram oferecidos inicialmente apenas para marketplaces que operam grandes volumes de encomendas, como o Mercado Livre.
Onlog, Kangu, Mais Envios, Cia da Postagem, Multi Post Log, Superfrete, Frenet e Posta Já estão entre as empresas desse setor - algumas são ligadas a ex-dirigentes dos Correios.
O esquema é considerado ilegal por funcionários e donos de franquias dos Correios porque, apesar dos contratos, a venda de serviços da estatal para o consumidor final só poderia ser feita por quem tem uma loja franqueada.
Para isso, segundo a lei, é preciso disputar uma licitação.
Funciona assim: digo que quero ser cliente dos Correios e que vou postar 100 mil objetos por mês. Aí fecho um contrato e vou para o mercado, e digo que quem quiser postar comigo, vai estar postando nos Correios. O meu negócio é baseado exclusivamente no contrato que eu tenho com os Correios e nessa margem de desconto. Alfredo Bernardini Neto, advogado da Abrapost, sobre o modelo de negócios dos integradores
Os Correios defendem os contratos e atribuem o modelo de negócio a um acordo com o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que determina isonomia de preços e descontos. A estatal, no entanto, admite que não liberou o uso da marca.
Os integradores que responderam aos questionamentos do UOL sobre a investigação alegam que os contratos são legais e que os seguem com rigor.
Na mira do TCU
Os problemas apontados levaram o TCU (Tribunal de Contas da União) a abrir em setembro de 2023 um processo para investigar os integradores.
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Quero receberAlém das questões sobre uso de marca e falta de licitação, o tribunal analisa a possibilidade de os integradores aglutinarem diversos CNPJs para conseguirem descontos.
As empresas criam uma demanda artificial — 100 mil objetos por mês, por exemplo —, forçam um desconto para conseguir um contrato e, com base nisso, vão ao mercado oferecer vantagens agressivas, segundo a denúncia feita ao TCU.
As evidências trazidas aos autos e confirmadas pela unidade técnica indicam a existência de fotos e postagens em redes sociais de diversas empresas que, segundo a denúncia, demonstrariam as irregularidades apontadasWalton Alencar, ministro do TCU, na decisão que determinou a abertura do processo
Uma análise da área técnica do TCU, no início de maio, foi favorável aos Correios. "Diante de todo o exposto (...) os compromissos assumidos com o Cade com o propósito de evitar a discriminação econômica contra concorrentes, e que não foram identificados privilégios aos intermediadores ou inconformidades na aglutinação de objetos postais por essas empresas, opina-se pela improcedência da denúncia no tocante aos descontos ofertados", disse a auditoria especializada em comunicações na Corte.
Funcionários e associações levaram denúncias também para o Ministério Público Federal e à Polícia Federal, que conduzem investigações preliminares.
Concorrência desleal
Para Gustavo Justino de Oliveira, professor de direito administrativo na USP (Universidade de São Paulo) e IDP (Instituto de Direito Público), a liberdade comercial deve ser preservada, mas há uma ação necessária para evitar a concorrência desleal.
"Essas empresas precisam diversificar suas atividades para obterem uma relação jurídica legítima em critérios econômicos, técnicos e legais, podendo assim fornecer produtos ou serviços (...) com interesse comum aos Correios", afirma.
A fiscalização do cumprimento do termo de compromisso com o Cade, diz ele, poderia ter evitado esse problema.
"É essencial estabelecer critérios transparentes e padronizados para concessão de descontos e acesso aos serviços dos Correios, enquanto se oferecem incentivos para conformidade e recursos educacionais para orientação sobre as regulamentações do setor", completa.
Consultoria de ex-dirigentes
Ex-dirigentes dos Correios têm um papel importante no mercado de integradores, atuando como consultores, como mostrou o site Intercept Brasil.
José Carlos Rocha Lima, presidente da estatal nos anos 1990, aparece como colaborador em um anúncio da Onlog, empresa que lançou uma franquia para competir com os Correios.
Diretor comercial da estatal até 2019, José Furian Filho também atuou como consultor da empresa até janeiro deste ano.
O superintendente-executivo da diretoria comercial dos Correios na gestão de Dilma Rousseff, Pedro de Almeida Feijó, é outro que atua nesse mercado.
Ele é sócio-administrador da Mandou Bem Log e tem participação em outras empresas de fretes e envios.
O mercado demanda soluções de entregas rápidas e diferenciadas: entregas em três horas, mesmo dia, produtos pesados. E para isso os Correios não estão preparados Pedro de Almeida Feijó, da Mandou Bem Log, sobre os integradores permitirem aos Correios recuperarem fatias do mercado
A diretoria comercial dos Correios, em que Furian Filho e Feijó trabalhavam, é a responsável pelos contratos com essas empresas.
É essa área que define as tabelas de descontos que beneficiam os integradores, assim como outros itens da política comercial.
Furian nega que o negócio dos integradores seja ilícito ou que dê prejuízo aos Correios.
"As pessoas só olham para o lado do desconto, mas o desconto tem uma contrapartida", disse ao UOL.
Ele defende a atual política comercial da estatal, que permite a qualquer cliente os mesmos descontos, desde que agregue outros clientes e faça os pagamentos.
Os franqueados estão perdendo clientes por conta desse modelo de negócios, mas o modelo de negócios dos Correios tem mais de 30 anos. Na época esse modelo fazia sentido porque não havia dinheiro para fazer investimento em unidades própriasJosé Furian Filho, consultor e ex-diretor comercial dos Correios
José Carlos Rocha Lima foi procurado pela reportagem, mas não respondeu.
O que os Correios dizem
Procurada pelo UOL para comentar as agências "piratas", a estatal citou o acordo com o Cade assinado em fevereiro de 2019.
Os Correios foram acusados na época de prática anticompetitiva por oferecer preços diferentes para empresas consideradas parceiras, enquanto outras tinham de pagar mais caro pelas mesmas etiquetas de Sedex e PAC.
A estatal afirma ao UOL que, desde que assinou o termo de compromisso, não tem outra opção a não ser praticar os mesmos descontos para todos.
"Pelo termo, os Correios têm que garantir preços iguais para transações equivalentes, a partir de critérios transparentes e isonômicos como volume, trecho da entrega, tipo de encomenda, eliminando quaisquer critérios com finalidade deliberada de impedir o acesso de concorrentes a descontos", respondeu a empresa.
Sobre o uso nas lojas "piratas" do azul e amarelo característicos da estatal, os Correios dizem que os contratos vetam o uso da marca.
A estatal cita, também, que "está tomando medidas para defender e fortalecer a marca da empresa e fazer frente a novos modelos de negócio que vem surgindo nos últimos anos, mas sem descumprir o termo".
"Pelo termo, os Correios têm que garantir preços iguais para transações equivalentes, a partir de critérios transparentes e isonômicos como volume, trecho da entrega, tipo de encomenda, eliminando quaisquer critérios com finalidade deliberada de impedir o acesso de concorrentes a descontos."
Infração da marca
No material publicitário, é permitido que as empresas usem o logo dos Correios apenas ao lado dos de outros serviços de entrega, como Loggi e JadLog.
Ao contrário dos integradores, Loggi e JadLog são de fato concorrentes dos Correios, com serviços de entrega próprios.
São negócios que não dependem apenas da revenda de etiquetas dos Correios.
"Os Correios estão tomando medidas para defender e fortalecer a marca da empresa e fazer frente a novos modelos de negócio que vem surgindo nos últimos anos, mas sem descumprir o termo [firmado com o Cade em 2019]", diz a estatal ao UOL.
Essas medidas envolvem "aprimoramento das regras para uso da marca, com penalidades para uso indevido, incluindo as lojas que estavam se passando por unidades dos Correios".
"Com isso houve suspensões e cancelamentos de contratos, retirada de benefícios de preços e determinação para regularização de fachadas e peças promocionais envolvendo a marca Correios."
Essas medidas teriam sido implementadas nos últimos meses.
Os Correios não revelam, porém, quais foram as empresas punidas e como isso ocorreu. Segundo a estatal, essas informações são protegidas por sigilo comercial.
O que dizem as empresas
Dono da Kangu, o Mercado Livre disse desconhecer a investigação no TCU.
"Sobre espaço físico para comprar serviços de PAC ou Sedex, a Kangu esclarece que a seleção e contratação da transportadora, feita pelo usuário, é realizada exclusivamente na plataforma virtual."
A Mais Envios diz que cumpre com rigor o contrato. "Nossos clientes optam pelo serviço de frete '+ Envios expresso ou econômico' mesmo sabendo que, pela conveniência, podem pagar mais caro comparado ao desconto de 30% oferecido pelo app dos Correios."
"A empresa reconhece o papel dos integradores em fortalecer os Correios no mercado concorrencial de transporte de encomendas e caso os Correios se retirem do mercado, a +Envios conta com outros parceiros para realizar os envios", acrescenta.
Renato Jardim, presidente da Onlog, segue o mesmo discurso. "Eu cumpro [a lei]. Nem todos [cumprem], isso é verdade [fazem isso], estritamente as regras impostas pelo Ministério das Comunicações e pela empresa ECT, inclusive com impostos (...) para construir uma empresa séria."
A Posta Já, por sua vez, disse que seu objetivo é "aumentar a utilização dos serviços dos Correios, fortalecendo sua capacidade de vendas ao simplificar processos e maximizar os benefícios oferecidos".
"As investigações (...) trazem clareza ao tema e permitem um maior entendimento da operação. Estamos disponíveis para contribuir com essas discussões", acrescentou.
A Superfrete afirmou que "potencializa os resultados dos Correios". Disse ainda que não possui agências físicas e respeita todos os direcionamentos de uso de marca dos Correios.
A Frenet afirmou que não tem lojas físicas, que contrata os serviços dos Correios "como está previsto em contrato, e os remunera por isso (...) mesmo em eventual caso de inadimplência do vendedor."
As demais empresas não responderam até a publicação desta reportagem.
Sedex com desconto
A reportagem fez um teste e enviou quatro encomendas de Brasília a São Paulo para saber se os integradores cumprem o prometido nas propagandas nas redes sociais.
Uma das promessas é entregar um serviço igual ao dos Correios, mas mais barato.
Uma agência própria dos Correios, em Brasília, cobrou R$ 49,10 para enviar um envelope contendo um bloco de notas de cerca de 190 gramas para São Paulo via Sedex, em um teste realizado pelo UOL.
O prazo garantido pela estatal, de cinco dias úteis, foi cumprido.
A reportagem visitou depois uma loja da Onlog em Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal. Na fachada, há a marca dos Correios, coberta com fita adesiva amarela, mas ainda visível.
O preço foi R$ 44,19, o desconto menos vantajoso entre as empresas testadas.
Já para usar a Kangu, serviço que pertence ao Mercado Livre, é preciso imprimir a etiqueta e levar a uma agência dos Correios. O valor foi o mais vantajoso do teste, R$ 32,88.
Na Mais Envios, quarta empresa testada pelo UOL, há prestadores de serviço associados à empresa que enviam as encomendas.
A reportagem deixou um pacote em uma loja de autopeças em Brasília, chamada Garra Off-Road, e pagou R$ 35,90 pela etiqueta.
A encomenda enviada pela Mais Envios, no entanto, demorou mais de três dias úteis para chegar a São Paulo. Outros pacotes chegaram ao destino em um ou dois dias úteis.
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