Natália Portinari

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Governo burlou regra e escolheu empresa antes da hora em obras no RS

Nas obras emergenciais do Rio Grande do Sul, o governo federal burlou suas próprias regras e escolheu uma construtora para executar serviços antes mesmo de saber quanto eles custariam, direcionando contratos de R$ 57,8 milhões à empresa.

A empresa Neovia Engenharia, de Curitiba (PR), foi contratada no final de maio para desobstruir os trechos gaúchos das rodovias BR-287 e BR-153 por R$ 23,3 milhões e da BR-470 por R$ 34,5 milhões, mas já sabia desde o início do mês que seria escolhida.

Com o reconhecimento do estado de calamidade após as enchentes, o governo pode fazer contratações emergenciais, com dispensa de licitação. Quem está encarregado das obras nas estradas é o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes).

Para contratar sem licitação, a regra do governo determina que sejam solicitados orçamentos de ao menos três empresas, entre os quais é escolhido o mais vantajoso. É o que ocorreu, por exemplo, na escolha de consultorias de engenharia após o desastre climático.

No caso dos contratos de desobstrução e limpeza de rodovias, isso não aconteceu. Em 3 e 6 de maio, o DNIT fez duas reuniões online, com várias construtoras. A Neovia estava em ambas. Nesses encontros, as concorrentes disseram que não tinham condições de deslocar equipe e material para os locais. A Neovia, por outro lado, demonstrou disponibilidade.

Depois disso, já estando definido que a Neovia seria a escolhida, o DNIT pediu à empresa que enviasse suas propostas de orçamento. O órgão enviou o pedido por email em 21 de maio e 23 de maio, mais de duas semanas depois das reuniões iniciais.

Sabendo que era a única empresa a disputar as contratações, a Neovia não ofereceu quase nenhum desconto em relação aos preços de referência do DNIT. Enviou um orçamento idêntico ao do DNIT no contrato de R$ 34,5 milhões e deu desconto de 1% no de R$ 23,3 milhões.

O DNIT nega que tenha contrariado as regras, diz que a contratação "foi um procedimento adotado com respaldo jurídico" e que só convidou o fornecedor que efetivamente tinha condições de prestar o serviço, como uma forma de poupar tempo.

  • 3/5 e 6/5: Reuniões por vídeo com o DNIT, em que participaram diversas empresas
  • 21/5 e 23/5: DNIT pede propostas à Neovia Infraestrutura Rodoviária; respostas chegam no mesmo dia, praticamente sem nenhum desconto
  • 27/5 e 28/5: Contratos da Neovia com o DNIT são assinados
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Regras do governo

A solicitação de propostas antes de escolher a empresa contratada tem como objetivo garantir que haja alguma competitividade, impedindo que a administração pague mais do que o necessário pelos serviços, mesmo em situações de emergência.

A regra está prevista no Guia de Contratações Emergenciais do DNIT e foi reforçada em um parecer da AGU (Advocacia-Geral da União), de 10 de maio, que determinou como seria o procedimento das dispensas de licitação após o desastre no Rio Grande do Sul.

"Recomenda-se que a Administração obtenha, no mínimo, 03 (três) orçamentos válidos. E, no caso de impossibilidade, justificar", diz o documento enviado ao DNIT gaúcho.

Nesse caso, porém, o DNIT escolheu a construtora antes de pedir as propostas. Essa escolha foi explicitada para a própria empresa, que perdeu o incentivo para oferecer qualquer desconto, segundo apontam especialistas ouvidos pelo UOL.

"As melhores práticas em contratações públicas indicam que não é positivo colocar os competidores no mesmo ambiente, de forma a terem conhecimento uns dos outros, antes da apresentação de suas propostas comerciais", diz Mateus Piva Adami, professor de direito administrativo da FGV (Fundação Getulio Vargas).

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"O que a lei exige é que você demonstre que o orçamento é compatível com o mercado, e pedir as propostas a diferentes empresas contribui para essa finalidade."

O manual de combate a cartéis em licitações da OCDE também sugere que sejam evitados eventos amplos em que potenciais participantes se conheçam. "As autoridades públicas devem priorizar as reuniões individuais em vez de eventos amplos, ou (usar) ferramentas digitais que garantam o anonimato dos participantes nessas reuniões", diz a instrução.

Além disso, especialistas apontam que a demora para solicitar as propostas da empresa, de mais de duas semanas, demonstra uma morosidade que não é compatível com a urgência que, eventualmente, justificaria a reunião, se o contrato fosse assinado logo depois.

"Como se trata de uma situação de exceção, é preciso verificar se há indícios de cometimento de ato ilícito e, depois, se eventualmente teria havido um conluio entre a instituição e a Neovia, visando um favorecimento recíproco", diz Vera Chemin, advogada especializada em direito administrativo.

Para Gustavo Justino de Oliveira, professor de direito administrativo na USP (Universidade de São Paulo) e no IDP (Instituto de Direito Público), pode-se falar na necessidade de que o órgão público tivesse maior cautela em relação à realização da reunião.

"Essa situação, na qual a empresa oferece um orçamento idêntico ao do termo de referência ou com uma pequena diferença, pode ocorrer mesmo sem intenção de manipulação", afirma.

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"É importante ressaltar que todo esse processo de contratação será obrigatoriamente acompanhado pela Controladoria Geral da União (CGU), e também pelo Tribunal de Contas da União (TCU), tendo, portanto, a fiscalização necessária."

O que dizem o DNIT e a empresa

O DNIT disse ao UOL que é "importante frisar que a escolha dos fornecedores foi precedida de análise técnica, de modo a convidar empresas/fornecedores que já reunissem condições de habilitação para executar o objeto".

"Foi reunido o maior número possível de fornecedores que potencialmente pudessem atender a demanda da obra a ser contratada mediante dispensa de licitação para, no mesmo ato, manifestar interesse e, ao mesmo tempo, apresentar proposta de preços para execução do objeto. Em ambos os processos administrativos havia mais de três fornecedores presentes, número maior do que o esperado, face a situação arrasadora encontrada nos trechos em questão."

"Em ambos os casos, com exceção da empresa Neovia, todas as demais empresas convidadas a apresentar proposta manifestaram sobre a impossibilidade de pronto atendimento e início imediato das obras, declinando, assim, do interesse para contratação."

O órgão diz ainda que "a autarquia teria perdido muito mais tempo aguardando as respostas das empresas separadamente" — embora a Neovia tenha respondido aos pedidos de propostas no mesmo dia em que foram feitos pelo DNIT.

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Procurada pelo UOL, a empresa disse que não pode comentar o procedimento do DNIT. "Não cabe à empresa Neovia emitir opiniões sobre procedimentos internos dos órgãos públicos. Sendo assim, não podemos responder aos seus questionamentos."

"Aproveitamos o momento para ressaltar que seguimos as normas existentes em nossas contratações e seguimos à disposição dos competentes órgãos de controle."

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