Contratos após desastre no RS indicam cartas marcadas entre firmas gaúchas
Os contratos do governo federal com consultorias de engenharia para a recuperação de rodovias após as enchentes no Rio Grande do Sul têm indícios de combinação de preços entre as empresas convidadas.
O DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) convidou para o trabalho quatro empresas que costumam ganhar licitações juntas. Três delas ofereceram descontos, e cada uma ficou com um contrato.
As empresas STE, Ecoplan e Magna, de Porto Alegre e Canoas, foram escolhidas para assessorar o DNIT por um ano nas obras. Os contratos são de, respectivamente, R$ 23,6 milhões, R$ 19 milhões e R$ 30,1 milhões. Cada uma ficou responsável por uma região do estado.
Os contratos foram firmados por dispensa de licitação, devido à situação emergencial nas últimas semanas. As quatro empresas, convidadas pelo DNIT do Rio Grande do Sul, disputaram entre si os contratos de consultoria.
As empresas que ganharam as disputas já foram condenadas pelo TCU (Tribunal de Contas da União) por superfaturamento e fraude, como mostrou o UOL em maio. O diretor do DNIT, Fabrício Galvão, disse, na ocasião, que as convidadas foram escolhidas porque tinham equipes e equipamentos na região.
Embora tenham sido condenadas, as firmas não estão impedidas formalmente de contratar com o poder público.
Agora, sobre os indícios de combinação de preços, o DNIT diz ter mecanismos de integridade e controle interno e que "segue protocolos rigorosos para a avaliação das propostas, assegurando que qualquer indício de prática anticoncorrencial seja devidamente investigado e, se confirmado, as medidas corretivas necessárias sejam adotadas".
As empresas foram procuradas por telefone, por e-mail e através dos engenheiros responsáveis pelos orçamentos, mas, até a publicação desta reportagem, não responderam.
Descontos variáveis
Em orçamentos de obras de engenharia civil, há um parâmetro chamado BDI (Benefícios e Despesas Indiretas), que se refere aos custos de operação indiretos, que vêm do funcionamento da empresa.
Se o BDI for de 40%, o valor contratado pelo órgão público é o custo dos itens do orçamento acrescido em 40%. Para as consultorias emergenciais no Rio Grande do Sul, o DNIT propôs um BDI de 41,5%.
A Enecon, que ficou sem contrato, não ofereceu desconto em nenhum item do orçamento e ofereceu 41,5% de BDI.
Nas contratações vencidas pela STE e Ecoplan, apenas elas ofereceram um desconto substancial no BDI. No caso da Magna, a empresa ofereceu também um desconto em alguns itens do orçamento.
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Quero receberA Ecoplan ofereceu um desconto relevante no BDI apenas na unidade de Vacaria, em que se saiu vencedora. A STE também manteve um patamar próximo ao preço de referência em duas das concorrências, mas em Passo Fundo, onde venceu, reduziu o BDI para 35,8%.
A Magna cobrou valores menores pela equipe especializada — engenheiros e geólogos — além de reduzir o valor de "levantamentos, sondagens e ensaios especiais" e "consultoria especializada terceirizada" no contrato que ganhou. Dessa forma, a empresa conseguiu oferecer um orçamento mais barato que as demais, mesmo com um desconto menor no BDI.
Indícios de combinação
Segundo especialistas, há indícios de uma irregularidade administrativa e concorrencial, já que há uma probabilidade pequena de que as empresas tenham dado uma proposta melhor em cada contrato sem saber do desconto que as outras fariam.
"Existe uma dança das cadeiras que parece estar absolutamente parametrizada. A chance de essas propostas terem acontecido por acaso, matematicamente, é baixíssima, praticamente zero", diz Vitor Schirato, professor de direito administrativo da USP (Universidade de São Paulo).
"Assumindo que o órgão público não agiu de má-fé, a obrigação é anular os contratos, estabelecer um processo para apuração e denunciar para os órgãos de controle, para eventual responsabilização administrativa e criminal. Pode ser tanto infração administrativa quanto crime", diz Schirato.
O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) aponta que a divisão por áreas geográficas e concorrentes que apresentam propostas que não têm chances de ganhar, iguais ou maiores que os preços de referência, devem ser considerados como indícios de cartéis em licitações.
"As empresas que atuam em um cartel se utilizam de diversas estratégias para atingir seus objetivos, tais como definição conjunta do valor das propostas a serem apresentadas, redução do número de empresas licitantes nos certames, e apresentação de propostas sem a intenção de vencer a licitação, conhecidas como propostas de cobertura", diz o Cade.
No caso em questão, a Enecon enviou propostas que não eram competitivas, idênticas à tabela de preços referenciais do DNIT.
"É possível afirmar com certa segurança que existem indícios que remetem a uma suposta formação de cartel, cuja finalidade é auferir lucros a serem distribuídos entre si", diz Vera Chemin, advogada constitucionalista e mestre em direito público pela FGV (Fundação Getulio Vargas), sobre o caso.
Um cartel, segundo ela, se configura quando duas ou mais empresas compartilham o objetivo de dominar um mercado de forma ilícita.
Como consequência desse tipo de irregularidade, caso ela seja comprovada, a empresa pode ser proibida de contratar com qualquer instituição financeira oficial e de parcelar débitos fiscais, além de ser proibida de participar de licitações públicas.
"Quando empresas concorrentes se unem para participarem de uma licitação pública e antecipadamente definem o vencedor, deflagra-se o chamado cartel", diz Chemin.
O que diz o DNIT
O órgão reforça que "possui mecanismos de integridade e controle internos que visam identificar e mitigar riscos de práticas anticoncorrenciais, fraudes e corrupção".
"Já com relação ao processo de contratação, a autarquia destaca que o mesmo seguiu rigorosamente o Guia de Contratações Emergenciais do DNIT", acrescenta o órgão.
O órgão diz ainda que não tem ingerência direta na elaboração ou no envio das propostas pelas empresas e que o processo é "conduzido de acordo com normas e regulamentos estabelecidos, garantindo a equidade e a transparência".
"Entre as ações corretivas e de monitoramento a autarquia mantém um processo contínuo de auditoria interna para garantir a conformidade com os padrões legais e éticos. Qualquer sinal de irregularidade é prontamente investigado pela auditoria interna e, quando necessário, encaminhado às autoridades competentes."
Concorrência entre as empresas
As quatro empresas são velhas conhecidas: nos últimos anos, pelo menos três delas disputaram entre si 41 licitações no âmbito do DNIT, que totalizaram R$ 365,2 milhões, de acordo com levantamento feito pelo UOL. Outras empresas também participaram das disputas.
No Ministério do Desenvolvimento Regional, Magna e a STE ganharam juntas um consórcio para construir a barragem do arroio Taquarembó, obra próxima da fronteira do Uruguai, que começou em 2007.
A Magna foi condenada pelo TCU (Tribunal de Contas da União) por fraude à licitação dessa obra, decisão da qual está recorrendo.
Segundo a Corte, "as dezenas de diálogos telefônicos entre as pessoas investigadas, interceptados com autorização judicial, compõem um conjunto harmônico de elementos que apontam no sentido de que representantes da empresa Magna Engenharia Ltda., juntamente com outros agentes, atuaram dolosamente com objetivo de frustrar o caráter competitivo do certame".
No caso da STE, o TCU decidiu excluir a empresa da condenação, por não ter chegado a "indícios robustos" de sua participação na fraude.
Duplicação da BR-116
Magna, STE, Ecoplan e Enecon dividiram, em 2000, os quatro lotes no DNIT da duplicação da BR-116, obra que se arrastou por mais de duas décadas no sul do Rio Grande do Sul e já passou por várias fiscalizações do TCU.
O lote controlado pela Ecoplan foi alvo de um processo na Corte em que o ministro Walton Alencar chegou a determinar uma suspensão cautelar, em 2010, devido às falhas no projeto entregue pela empresa.
Os auditores do TCU encontraram um sobrepreço de R$ 93,3 milhões. Havia "projeto básico/executivo sub ou superdimensionado; sobrepreço decorrente de preços excessivos frente ao mercado; e projeto básico deficiente ou desatualizado", e a Ecoplan foi condenada a uma multa de R$ 227 mil.
A ordem de serviço para o início da obra foi assinada apenas em 2012. As empresas contratadas para a supervisão foram Magna, Enecon e STE. Os contratos, desde então, vêm recebendo aditivos ano a ano. O trabalho que tinha previsão inicial de custar R$ 26 milhões já custou R$ 96,1 milhões.
Improbidade
A Magna responde a uma acusação de improbidade administrativa por uma obra no Tocantins, na barragem do rio Arraias, onde houve uma série de problemas. Segundo o MPF, houve erros propositais nos projetos, gerando valores aditivos desnecessários no contrato.
Ao fim da investigação, em 2009, o TCU encontrou "jogo de planilha, sobrepreço e superfaturamento". O MPF aponta um desvio de mais de R$ 15 milhões em recursos públicos e um prejuízo para a União de R$ 40,9 milhões (em valores de 2007, sem correção).
Em 2022, a Justiça considerou que houve a prescrição (perda do prazo para a punição) dos fatos descritos na ação, mas a AGU (Advocacia-Geral da União) recorreu da decisão.
Em 2019, o MPF denunciou os donos da Magna por associação criminosa e lavagem de dinheiro. Segundo a acusação, os envolvidos ajudaram o secretário de governo de Canoas (RS) a ocultar bens financiados com dinheiro desviado de programas do município.
O Judiciário entendeu que o MP não foi capaz de provar a ocorrência do crime antecedente ao crime de lavagem, e, por isso, os empresários foram absolvidos. Uma representante da Magna, porém, foi condenada a quatro anos de prisão por ter emprestado uma conta bancária para a operação de lavagem de dinheiro em favor do político.
A Valec, antiga estatal, hoje incorporada à Infra S.A., está cobrando a Ecoplan pela multa que recebeu do TCU devido às irregularidades encontradas no projeto da obra da ferrovia Norte-Sul.
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