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Presença Histórica

OPINIÃO

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Negros e indígenas na Independência da nação que se pretendia branca

Monumento a Ansina em Monteviéu (Uruguai). - Sebastian Lanzani / Wikipedia
Monumento a Ansina em Monteviéu (Uruguai). Imagem: Sebastian Lanzani / Wikipedia

Colunista do UOL

17/08/2022 04h00

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De onde vêm essas pessoas escuras
Que não são morenas nem negras?
Enigma é a raça charrua
Que venera o solo oriental

No próximo 7 de setembro o Brasil completará 200 anos da sua Independência. Já o nosso vizinho Uruguai alcançará essa marca daqui três anos. Mas é em agosto, mais precisamente no dia 25, que os uruguaios têm a data de sua Independência sempre com grandes festividades, e esse ano não será diferente. Aquela nação construiu uma história oficial que invisibilizou drasticamente a presença de indígenas e negros, algo presente inclusive na não presença dessas categorias nos censos de quase todo século 20. A "Nação Branca", no entanto, será que realmente foi e é branca? Qual o lugar dos indígenas e negros na história do Uruguai?

Em 1951, foram publicados em espanhol os versos acima e a autoria foi atribuída pelo antropólogo Daniel Hammerly Dupuy a Ansina, um homem negro que teria participado das primeiras lutas de libertação do atual Uruguai. Os versos intitulados "Artigas Y Los Charrúas" foram publicados em uma obra dedicada ao grande herói da nação uruguaia, José Gervásio Artigas. Trata-se de uma história que a história não contou por muito tempo.

Repleta de cores, trata-se de uma narrativa sobre gentes comuns e muita contradição em torno da independência da então Província Cisplatina frente ao Brasil. O Império do Brasil não tinha 3 anos completos, quando, em 25 de agosto de 1825, deu início a Guerra Cisplatina. A data que hoje é consagrada à Independência do Uruguai deu início a um processo que se concretizou em 1828, com a assinatura da Convenção Preliminar de Paz e a criação oficial da República Oriental do Uruguai. A república foi uma conquista de diferentes grupos, incluindo negros e indígenas, ainda que muitos desses tenham morrido em campos de batalha ou emboscadas vis de seus próprios líderes - ou, pior: foram simplesmente apagados da história.

Indígenas e negros na construção da independência uruguaia

A chamada Banda Oriental também viu aparecer diferentes projetos políticos de emancipação, principalmente a partir das primeiras décadas do século 19, em decorrência das transformações políticas e sociais pelas quais passavam a corte espanhola. O projeto liderado por José Gervásio Artigas alcançou projeção, com grande incidência no mundo rural local, sobretudo a partir de 1811. Já é bastante discutido na historiografia dos processos independentistas o Regulamento promulgado em 1815 por Artigas.

Esse instrumento ficou conhecido como um tipo de reforma agrária, tendo em vista o objetivo principal de retirar terras de latifundiários improdutivos para distribuí-las entre trabalhadores rurais dispostos a cultivá-las. Dentre estes, estavam negros livres e indígenas que viram assim seus direitos de cidadania ampliados. É evidente que tal medida não agradou parte considerável dos grupos proprietários. Estava instaurado um conflito em que os portugueses e luso-brasileiros se envolveram e derrotaram Artigas e todos aqueles que compartilhavam de seu projeto em 1820. Isso levou à anexação da Banda Oriental em 1821, sob o nome de Província Cisplatina.

Neste momento, Artigas exilou-se no Paraguai, acompanhado de um grupo de soldados, sobretudo negros. Dentre esses, possivelmente se encontrava Ansina, o autor dos versos que abrem este artigo. Possivelmente, pois tem início uma das questões mais controversas da historiografia uruguaia. E agora damos um salto no tempo para entender essa questão.

Juan Jacinto Ferrán, Carlos Pérez e Telésforo Machado eram três jovens negros, trabalhadores na cidade de Melo que, em fins da década de 1930, criaram o Comitê Cerro Largo de Homenagem a Ansina e solicitaram à Intendência Municipal que a capital departamental tivesse uma rua ou uma praça com o nome de Manuel Antonio Ledesma (Ansina). O comitê era parte de uma organização nacional de mesmo nome, com sede em Montevidéu. A justificativa para a sua criação estava no fato de Ansina ter sido o fiel companheiro de Artigas, mas não era devidamente reconhecido pelo estado nacional.

O nome da rua era Manuel Antonio Ledesma (Ansina) e foi sobre esse nome que se deu toda a reconstrução histórica e a valorização evidenciadas por meio das páginas dos periódicos raciais uruguaios. No entanto, Manoel Antonio Ledesma e Ansina eram pessoas diferentes e as autoridades do governo nacional do Uruguai sabiam disso, pois encomendaram uma investigação ao Instituto Histórico e Geográfico do Uruguai em 1927, em decorrência da solicitação de repatriação dos restos mortais de Ansina, que se encontravam no Paraguai.

Manuel Antonio Ledesma teve sua existência documentada pelas pesquisas solicitadas pelo governo nacional. Nelas, ele figurava como um sargento, que atuou junto a Artigas e o acompanhou até o Paraguai. Chegando lá, ele foi dispensado junto com outros soldados. Já Ansina seria o apelido, ou uma forma carinhosa, pela qual se denominava Joaquím Lenzina, podendo ser, até mesmo, uma variação de seu sobrenome. Este não teve a existência comprovada por meio de documentação de caráter oficial, mas lhe é atribuída uma vasta obra poética recuperada a partir dessas investigações. Ele sim teria sido o fiel escudeiro de Artigas. E quem guardou seus escritos foi Ledesma, que o teria reencontrado após a morte de Artigas. Ambos eram negros e teriam lutado junto a Artigas.

Em 1940, repatriaram os restos mortais de Manuel Ledesma, mas as indefinições sobre a identidade e existência de um Ansina foram mantidas. Foi a imagem de Ledesma a base para as esculturas de Ansina. É consenso apenas que se tratava de um negro, com o nome não registrado em documentos históricos escritos, mas vivo na memória dos negros uruguaios.

Voltemos ao século 19 para observar que, se aos grupos negros houve alguma forma de manter-se vivo no imaginário da nação, o mesmo não aconteceu com os indígenas. Identificados em um primeiro momento com o projeto artiguista, eles foram vistos como grande empecilho para pacificar a região durante campanha de consolidação do estado nacional. O primeiro grande ato do primeiro presidente do país, Fructuoso Rivera, foi o Massacre de Salsipuedes, direcionado aos grupos Charruas. Aqui cabe destacar a perversidade de tal ato.

charrua - Divulgação - Divulgação
Monumento em homenagem à Nação Charrúa, em Montevidéu
Imagem: Divulgação

Engendrado como uma reunião com os caciques e membros das tribos sob o disfarce de discutir o assentamento de todos em uma única região, a reunião terminou em uma emboscada, com indígenas mortos ou aprisionados. Entre os que sobreviveram, caciques e mesmo uma mulher indígena grávida de nome Micaela Guaynusa, foram enviados a Paris em 1833 para serem expostos nas "tradicionais" e horrendas exposições humanas de grupos racializados, sob o signo do exótico.

Somente em 2005, os grupos Charrua voltaram a se organizar coletivamente no Uruguai, por meio do Conselho da Nação Charrua. Organização atuante que até então reivindica dentre outras questões a ratificação pelo estado nacional da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, voltada ao reconhecer e proteger os povos indígenas, incluindo o direito à terra. Uruguai, Suriname e Guiana são os únicos países sul-americanos que não ratificaram a convenção.

No entanto, o processo histórico de atuação dessas "gentes escuras" — como referenciado no poema produzido possivelmente ainda no século 19 - foi bastante complexo e enfrentou um apagamento perverso na escrita da história que vem sendo combatido com muita luta. Atualmente, o denominado toque de Ansina no carnaval uruguaio é o mais tradicional entre os toques de tambores. E, o Conselho da Nação Charrua, é dos mais ativos.