Guerra sem fim: povos indígenas, o Marco Temporal e o direito à terra
Nós estamos em guerra.
Eu não sei por que
você está me olhando
com essa cara tão simpática.
O seu mundo e o meu mundo
estão em guerra.
(...)
Não tem paz em lugar nenhum.
É guerra em todos os lugares,
o tempo todo.
Ailton Krenak
Não se tem paz mesmo. Na mesma semana em que se podiam celebrar as representativas vitórias da equipe de ginástica brasileira que subiu ao pódio olímpico pela primeira vez, era impossível não se indignar com as notícias de brutais ataques a povos indígenas em diferentes pontos do país. Cercos formados por carros potentes posicionados em posição de ataque, homens fortemente armados, tiros disparados e falas de ameaça carregadas de violência: "O bambu vai envergar. Todo mundo se organizando para o grande conflito. Vamos avançar", diz um vídeo gravado à noite no Mato Grosso do Sul que circulou nas redes sociais há alguns dias. Nesse momento, estamos falando de, pelo menos, 5 estados brasileiros onde os povos indígenas estão vivendo uma escalada de violência na guerra de mil anos que faz parte de suas existências desde o começo dos tempos da história colonial do Brasil. Além do Mato Grosso do Sul, há conflitos no Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia e Ceará.
"O seu mundo e o meu mundo estão em guerra": os povos indígenas e o Marco Temporal
As organizações indígenas atribuem o recrudescimento da violência à aplicação da Lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso Nacional, que estabeleceu a tese defendida pelo setor do agronegócio relativa ao Marco Temporal. O tema já foi objeto de deliberação no Supremo Tribunal Federal, mas as disputas persistem. A chamada lei do Genocidio Indígena é uma expressão delas.
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Quero receberE o que é esse tal de "Marco Temporal"? De modo simplificado, vamos lembrar que a Constituição Federal de 1988 determinou a obrigatoriedade de efetivar a demarcação das terras dos povos indígenas no Brasil. Ocorre que, em muitos lugares, esses territórios ancestrais estão em disputa direta pelas sucessivas ocupações coloniais e na rota de colisão com a expansão do agronegócio contemporâneo. Para atender a esses interesses, grupos defendem a criação de um "marco temporal", ou seja, uma data precisa para dizer que só serão demarcadas terras indígenas nos termos da CF aquelas que estivessem ocupadas pelos povos a partir de um determinado momento. A data escolhida foi 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição. Esse seria o "marco temporal". Quem pudesse provar que estava nas suas terras a partir desta data teria direito a demarcação; quem não estivesse, estava fora do critério e, portanto, sem direito a reconhecimento de seus territórios.
A essa altura, as pessoas podem se perguntar qual o problema de estabelecer uma data para que a CF seja cumprida. A resposta é bastante simples: a defesa de uma data aleatória para reconhecer o direito à terra dos povos originários é uma aberração histórica. Estabelecer uma data, e ainda mais essa em pleno século 20, é uma tentativa brutal de apagar dimensões relevantes para entender a questão da perspectiva dos povos originários. A primeira é que a permanência - ou não - em determinado território nunca dependeu de uma decisão exclusiva dos indígenas. Ou seja, a história dos sucessivos processos de expulsão e expropriação de territórios é ignorada ou tratada como um dado sem importância. Importa deixar claro que a história da expropriação e espoliação das terras indígenas é toda a história do Brasil. Com a ocupação colonial, o único modo de adquirir terras neste país era por meio da expropriação dos povos originários. Não havia "terra vazia"; as sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa eram, majoritariamente, terras indígenas. É de guerra que estamos falando, lembra?
Isso quer dizer que quem não estava em suas terras ancestrais em 1988 simplesmente não podia estar lá porque seu povo havia sido expulso em outros tempos. Muitas vezes, estamos falando de gerações e gerações que acumulam uma longa história de incontáveis perdas de territórios, como é o caso das populações no Paraná. Essa é uma questão essencial para contextualizar a injustiça da tese do Marco Temporal hoje.
"Não tem paz em lugar nenhum": os povos indígenas e a luta pela terra
A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, declarou em 2019, na reunião da Cúpula do Clima da Organização das Nações Unidas, que a "luta pela terra é a mãe de todas as lutas". Essa intervenção nos ajuda a contextualizar uma segunda dimensão desse debate sobre os significados da terra para os povos indígenas. Trata-se do fato de que as relações que os povos mantêm com seus territórios não se explicam no que o senso comum conhece como relações de propriedade. É muito mais que isso e, ao mesmo tempo, muito diferente. Os territórios fazem parte inseparável da vida, do modo de ser e de estar no mundo. Não há meios de existir como povo sem estar no território. As referências do universo cosmogônico e, principalmente, os enraizamentos das ancestralidades estão ali. Não é possível, por exemplo, remover povos para outras terras que não aquelas que eles reconhecem como partes de suas existências. O território não é apenas o espaço de onde se tira a sobrevivência; é a própria condição da vida. Por inteiro. Não é por acaso que o conceito de bem viver tem sido incorporado nos debates sobre governança e políticas protagonizados pelos povos indígenas. Trata-se de uma noção abrangente e complexa que considera a convivência respeitosa entre os seres humanos e entre estes e a natureza como o caminho para garantir uma nova forma de viver e conviver. "Outro mundo é possível" porque povos originários têm construído experiências sustentáveis ao longo do tempo que orientam nossas escolhas para assegurar a existência humana no planeta. A despeito da importância desse debate, a guerra não tem trégua. Nunca.
As notícias são diárias e reportam violências continuadas como invasão de terras, assassinatos indiscriminados, incêndios criminosos em plantações e, até mesmo, em casas de reza. Dados do Conselho Indigenista Missionário indicam que, entre janeiro de 2020 e fevereiro de 2024, foram incendiadas cerca de 16 casas de reza. Em junho de 2024, foi queimada a casa de reza guarani kaiowá de Porto Lindo, a pouco mais de 400 km de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. O relatório "Violência contra os povos indígenas do Brasil", divulgado pelo CIMI em julho/2024, revela que 208 indígenas foram assassinados em 2023. Os números do mapa da morte impressionam: são 47 casos em Roraima, 43 no Mato Grosso do Sul, 36 no Amazonas, 16 no Rio Grande do Sul e 10 no Maranhão.
Há uma intensa mobilização das organizações em todo o país para uma manifestação pública contra o Marco Temporal em 5 de agosto, momento em que o STF instala a Mesa de Conciliação do Marco Temporal, iniciativa fortemente rejeitada pelos povos e que reunirá diferentes agentes para chegar a um consenso sobre o tema. A mobilização convocada é mais uma que se soma a inúmeras iniciativas em defesa dos direitos dos povos originários. A demarcação ainda está no horizonte. Embora se reconheçam avanços nas ações do governo federal, ainda estão longe de atender às demandas urgentes dos povos. A luta pela terra, nesse momento, precisa afastar definitivamente a ameaça do Marco Temporal desse cenário.
Impressiona mesmo é o enorme esforço intelectual e político de sustentar essa imensa desinformação com relação aos povos indígenas no Brasil. Importa mesmo não ignorar a historicidade de suas lutas por direitos. Tem um genocídio em curso nesse país neste exato momento. O tempo todo. Não ignore. Não deixe cair no silêncio cúmplice. É preciso não esquecer as histórias dessa guerra.
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