Cidadania negra e o futuro da democracia no Brasil
"É próprio dos ditadores não gostar da verdade e dos negros!" A afirmação foi feita por Carolina Maria de Jesus (1914-1977), em 1961, quando da censura de seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, em Portugal e nas colônias portuguesas nos continentes africano e asiático, pelo regime salazarista.
A atualidade daquela reação da escritora, para o contexto brasileiro, deveria estarrecer e mobilizar; especialmente em vista do cenário político contemporâneo, marcado por fortes ameaças às conquistas democráticas do país, das quais lideranças e intelectuais negros e negras como Carolina tem sido protagonistas históricas.
A escritora mineira, internacionalmente conhecida a partir daquele seu primeiro livro, publicado em 1960, recebeu homenagem nos dias 15 e 16 de outubro, no ciclo de debates Carolina, escritora do Brasil, em Nova York e Washington DC, nos EUA.
Quarto de Despejo, que bateu o recorde de trinta mil cópias vendidas, na primeira edição, e chegou a cem mil, somando a segunda e a terceira edições, pode ser considerado um exercício fecundo de percepção sobre o país.
Carolina, intérprete do Brasil, não apenas registrava seu cotidiano durante o período em que vivera na favela do Canindé, sustentando a si e à sua família do que conseguia de recursos catando lixo na cidade que se projetava, como símbolo da modernidade e do progresso via industrialização.
Nesta, como em outras obras suas, a autora e multiartista apresenta visão profundamente crítica sobre sua condição, a vida, seus desejos e o país que não permitia que ela os realizasse.
"O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora", afirmava. E também advertia: "A democracia está perdendo seus adeptos. No nosso paíz (sic) tudo está enfraquecendo. (...) A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia."
A perspicácia de Carolina e sua habilidade de observar a realidade em seu entorno e interpretá-la criticamente foram traços que a constituíam desde quando criança, na cidade de Sacramento (MG). Ela, que ali nascera a 14 de março de 1914, e escrevia desde menina, foi afetada pelos ecos da escravidão.
Ela e sua família foram testemunhas vivenciais das consequências de uma Abolição que não incorporou projetos de cidadania para a gente negra egressa do regime - experiências significadas anos depois em outra obra sua, Diário de Bitita, por meio da qual é possível indagar sobre esse Brasil Pós-Abolição, em que a vida negra era tratada como "rebotalho", alvo de interdição constante, não lhe sendo permitido acessar a "sala de estar".
Assim o percebeu Carolina, cujo eu lírico manifestou, em um poema, ter sido "tolhida pelo preconceito", nas muitas coisas que quis realizar; e desejar renascer "num país que predomina o preto", um "Brasil para os brasileiros", talvez.
Um Brasil negro em cena
Em 1961, Carolina encontrava-se na favela do Canindé, com outra grande intérprete do Brasil, a atriz Ruth de Souza, que se preparava para encenar, nos palcos, uma adaptação teatral de Quarto de Despejo.
Ruth integrara o Teatro Experimental do Negro (TEN), iniciativa idealizada por Abdias do Nascimento (2014-2011) e cuja criação foi celebrada no último dia 13.
O TEN, surgiu no Rio de Janeiro, para promover a valorização social da gente negra e da cultura afro-brasileira, por meio da arte e da educação. Com ele almejava-se a criação de um novo estilo dramatúrgico, esteticamente original - uma resposta à ausência de artistas negras e negros na cena brasileira ou à sua destinação a papeis estereotipados, quando eram admitidos; assim como à ausência de temas alusivos à história da população negra nas representações teatrais - problema que reverbera na atualidade.
Seu elenco era constituído, em princípio, por empregadas/os domésticas/os, operários, moradores de favelas, funcionários públicos com cargos modestos, dentre outros - pessoas que, a partir dos processos formativos do TEN, se municiavam de habilidade crítica quanto às suas próprias vivências e às da população negra como um todo, no contexto social brasileiro, e produziam representações outras, dignificadas, de sua vida, sonhos e projetos coletivos.
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Quero receberAbdias, que nascera na cidade de Franca (SP), no mesmo dia e ano em que Carolina, engajara-se, desde os anos 1930, ações políticas (como a Frente Negra Brasileira) e culturais que consolidaram movimentos que reivindicavam equidade para a população negra no Brasil - aquele mesmo testemunhado por Carolina e sua geração, no qual a "gente de cor" era alvo de projetos de extinção, nas políticas eugenistas de então.
Um ano após a criação do TEN e com o apoio deste, Abdias participou da organização da Convenção Nacional do Negro Brasileiro - novo passo em uma luta antiga por direitos civis que tinha raízes, no mínimo, nos projetos de abolicionistas negros do século XIX.
A Convenção, de natureza suprapartidária, tinha Abdias como presidente do seu diretório nacional e teve adesão de ativistas e intelectuais negros e não negros, e de representantes dos diretórios de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo.
Foi realizada na Associação Paulista de Imprensa e propunha ações efetivas de promoção de condições de cidadania para a população negra. Tais reivindicações foram registradas em um manifesto que, em contexto de definição de uma nova constituinte para o país, foi enviado ao Congresso Nacional, fundamentando as condições para a formulação de um projeto de lei antidiscriminação racial que integraria a Constituição de 1946.
O que não foi alcançado, naquele momento, devido ao impacto da ideia equivocada e muito bem aceita pela intelectualidade vinculada ao poder hegemônico, de que viveríamos em uma democracia racial - a partir da influente interpretação do sociólogo e então deputado federal constituinte, por Pernambuco, Gilberto Freyre.
Além disto, o campo progressista da época refutou o projeto, com base no entendimento de que os problemas sociais no Brasil estariam relacionados a questões de diferença de classe, sendo a raça, quando muito, um fator - em geral interpretado como "um problema" - secundário.
Por fim, em 1951, foi promulgada a chamada Lei Afonso Arinos, proibindo a discriminação racial no Brasil. Contudo, foi preciso mais de três décadas, para a efetividade do cumprimento dessa lei: a Constituição de 1988, tornou inafiançável e imprescritível o crime de racismo, o que foi regulamentado pela Lei 7.716 de 5 de janeiro de 1989, conhecida como "Lei Caó". Por ela, foram especificados os crimes de racismo e definida a pena de reclusão de dois a cinco anos para quem neles incorrer, cometendo atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Outros avanços na legislação, contemplando reivindicações dos movimentos negros desde os anos 1930, são observados, tais como o Estatuto da Igualdade Racial, de 2010 e a Lei de Cotas, de 2012. E, vale ressaltar, tratam-se de conquistas que beneficiam a toda a sociedade brasileira, resultantes de árdua e continua atuação dos movimentos negros e indígenas, nos quais o protagonismo das mulheres tem sido determinante.
Não obstante, a persistente sub-representação dessas mulheres nos espaços de poder, em cargos legislativos e executivos é algo temeroso e inaceitável - ainda mais em um contexto de ataques dos mais vis a direitos constitucionalmente assegurados, como o que vivenciamos no presente.
Nas últimas eleições, tivemos pequenos e importantes avanços que podem melhorar, particularmente, a qualidade dos corpos legislativos municipais. Que as mulheres negras, indígenas, cis e trans eleitas para mandatos progressistas, especialmente, fluam como as águas com que se identificava Carolina em um seu manuscrito de 1961: "se faz um dique impedindo o seu curso ela vae evoluindo-se e transpõe." E que com elas, a sociedade brasileira se revigore e retome o curso de aprimoramento de sua democracia.
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