Presença Histórica

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Opinião

Explosão no Planalto e narrativas sobre a República no Brasil

A República é marcada por um elemento de triste continuidade: a violência, ora em episódios coletivos, ora (aparentemente) individuais, como a explosão de uma bomba em plena Praça dos Três Poderes, em Brasília, nesta terça-feira (12).

A suposta cordialidade do povo brasileiro, enquadramento mais que oficial da nossa história, estabelece uma história única - seja regional ou nacional - que encobre muitos elementos da nossa realidade.

Em 14 de novembro de 1844, por exemplo, um massacre pôs fim aos sonhos de liberdade na então República Rio-Grandense. O episódio conhecido como "Traição de Porongos" ou "Massacre de Porongos" foi marcado pela chacina de homens negros pelos imperiais durante a guerra civil que assolou o território sulino.

Na ocasião, o tenente-general Francisco José de Souza Soares de Andrea, presidente e comandante das armas da província de Rio Grande de São Pedro, atual Rio Grande do Sul, emitiu uma ordem para que as polícias das cidades de fronteira realizassem um levantamento sobre os escravizados que haviam fugido.

Todos os caminhos levavam para a região platina. Afinal, no Uruguai a escravidão já fora abolida e a República Oriental definia-se como um solo livre de escravidão.

Em documentação presente no Arquivo Histórico do RS, encontra-se uma "lista dos escravos que me faltam do tempo que durou a Guerra nesta Província e que julgo estarem nos estados vizinhos", redigida por João Simões Lopes (avô do escritor homônimo, que nasceria em 1865).

Nesta lista é possível observar nomes e traços distintivos de sete homens que, ao que tudo indica, além de terem optado por juntar-se às tropas farrapas ou às imperiais durante a guerra civil que assolou a região entre 1835 e 1845, decidiram também manter a experiência de liberdade dos tempos de guerra, no lado de lá da fronteira, em terras republicanas.

Há exatos 150 anos um homem de nome Jesuíno foi acusado de assassinato. O crime ocorreu na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Pouco sabemos sobre quem foi Jesuíno, mas além de acusado, é sabido que era filho de Rosa, uma mulher escravizada identificada como de cor preta.

Nascido no Alegrete, na fronteira com a Argentina, Jesuíno também era escravizado e, com certeza, não era jovem, visto que teria servido ora junto às tropas farroupilhas, ora às imperiais, durante a guerra civil farroupilha.

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Pelo menos por seis anos, Jesuíno pode ter experimentado a liberdade, como consta de seu depoimento prestado em 1874, segundo documentos do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Os casos aqui mencionados estão em documentos públicos organizados e salvaguardados nos dois arquivos referenciados. E as experiências de liberdade negra durante a Farroupilha foram contempladas em pesquisas históricas e patrimoniais desenvolvidas por Daniela Vallandro de Carvalho, Vinicius Pereira de Oliveira e Carla Menegat, para ficarmos com alguns exemplos relevantes.

No entanto, essas histórias são pouco conhecidas, sobretudo quando falamos de casos como o de Jesuíno, gentilmente partilhado por Vinicius Oliveira.

A narrativa corrente no sul do Brasil é sobre a morte e o extermínio dos lanceiros, que acaba se convertendo na suposta inexistência de negros nesta parte do país. Pouco se fala sobre aqueles que sobreviveram e, a seus modos, dentro de estruturas bastante restritivas, tiveram algum manejo de seus futuros, de seus ideais de liberdade, igualdade e cidadania.

Há pesquisas históricas, documentos comprobatórios e, não menos importante, há uma memória histórica sobre esses elementos enquanto parte da história da República Rio-Grandense.

O que nos faz perguntar: por que esses conhecimentos não são de amplo alcance? Por que a identidade regional ainda insiste em se assentar na branquitude, na valorização única e exclusiva da imigração teuta e germânica?

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A violência, nesses casos, extrapola o massacre, e alcança a circulação do conhecimento, fazendo com que determinados grupos sejam entendidos como constituidores da República em detrimento de outros. Mas a violência vai muito além destes limites epistêmicos, regionais ou relativamente localizados no tempo.

Que República temos e qual queremos?

A violência espraia-se pelo Brasil e define ainda hoje a nossa República, quando naturaliza a crescente e constante morte de jovens negros, de comunidades indígenas ou mesmo episódios de violência que têm marcado nossa política institucional desde 2013.

Os elementos aqui destacados nos permitem observar o que foi encoberto por uma narrativa acerca da República proclamada bem antes do 15 de novembro de 1889, mas que permaneceu e permanece acobertado.

A cordialidade que supostamente sustentaria a tão propagada democracia racial da República brasileira há mais de um século encobre a violência que corroe o próprio horizonte republicano.

Sim, horizonte, afinal, se o sistema republicano moderno tem por base o que é comum a todos os cidadãos, incluindo a igualdade e a liberdade, nossa história tem demonstrado que sequer a cidadania é algo que esteja ao acesso de todos igualmente.

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O episódio ainda em investigação acerca da explosão de uma bomba e morte de uma pessoa essa semana em Brasília é exemplar da violência indiscriminada que nos acomete, inclusive quando ousamos discordar politicamente. Os tempos foram e permanecem difíceis para quem defende os princípios básicos do republicanismo moderno.

Nossa história única em tempos de República encobre violência, desigualdade, restrição de direitos e mais um tanto de perversidades que não apenas solapam sonhos, mas efetivamente interrompem vidas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.