Iphan reconhece tradição negra da Marujada como patrimônio do Brasil
Agora é oficial: as Marujadas de São Benedito, no Pará, são patrimônio cultural do Brasil. Reconhecidas pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) durante reunião de seu conselho consultivo no dia 4 de setembro, as Marujadas foram inscritas como bens culturais imateriais no Livro de Registro de Celebrações.
Em pormenores, a Marujada é uma forma cultural de expressão e celebração para São Benedito, em que mulheres e homens de diferentes idades homenageiam o "santo preto" através de danças e indumentárias próprias, rezas e ritualizações que caracterizam esse momento de devoção, que ocorre tradicionalmente entre os dias 18 e 26 de dezembro.
No dia 26 de dezembro, marujas e marujos colorem as ruas de Bragança com suas vestimentas em vermelho e branco - as mulheres com chapéus de penas de pato e fitas coloridas - e percorrem as ruas do centro histórico e comercial, com os pés descalços, para acompanhar a procissão de São Benedito. Ao final, após chegar na Igreja, dançam em celebração ao santo, no Teatro Museu da Marujada, os ritmos tradicionais da festa: roda, retumbão, chorado, mazurca, valsa, contradança, xote e arrasta-pé.
A Marujada espraia-se pela região bragantina, nordeste paraense, onde há registro de suas manifestações nos municípios de Augusto Corrêa, Tracuateua, Quatipuru, Primavera e Capanema; além de Ananindeua, na região metropolitana de Belém. Em Tracuateua e Capanema, as Marujadas estão também associadas a São Sebastião. Mas de modo geral, elas ligam-se a São Benedito e derivam de uma tradição originada em Bragança há séculos atrás.
O pedido inicial de reconhecimento como patrimônio ocorreu em 2011, após o envio de um conjunto de documentos pela Irmandade da Marujada de São Benedito de Bragança ao IPHAN. Mas foi apenas entre 2018 e 2022 que as pesquisas para subsidiar o registro foram realizadas por uma equipe da Faculdade de História da UFPA. Em 2020, as Marujadas de Capanema, Quatipuru, Augusto Corrêa, Tracuateua, Primavera e Ananindeua foram incluídas no processo de registro, após intensa mobilização de associações locais junto à Superintendência do IPHAN no Pará.
Tradição recriada para organização e mobilização social dos períodos coloniais
O culto e a devoção a São Benedito mobilizou e mobiliza diferentes sujeitos sociais em torno de festejos e celebrações para este santo católico no Brasil desde os tempos coloniais, especialmente a população negra - fosse ela escravizada, livre e/ou liberta.
Também estava presente em outras partes da América Latina e até da Europa, como enfatiza Lucilene Reginaldo ao estudar irmandades negras em Portugal no século XVIII, muitas delas associadas a São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora de Guadalupe.
Logo, essa presença negra em distintos pontos da Diáspora, entre África, América e Europa, ampliou os repertórios socioculturais ao inserir outras referências e sentidos religiosos afrocentrados, em certa coexistência com o catolicismo - muitas das vezes velada, devido às imposições repressivas da Igreja Católica, braço forte da colonização. Isso produziu uma dinâmica própria que (re)criou tradições, sociabilidades e suas solidariedades voltadas à gente negra e indígena.
A relação construída com São Benedito por esses sujeitos, e com outros santos e santas negras, representa uma das formas de estabelecer sentidos de comunidade, de um ethos afrodiaspórico, e resistir perante as violências e crueldades do sistema escravista. Demarca assim uma possibilidade de afirmação e vivência dessa cultura transplantada para cá desde África, revestida aqui de novas práticas e saberes que deram outra força (e tecnologia) ancestral às pessoas negras da Diáspora, ontem e hoje.
No Pará e no Amazonas, diferentes lugares possuem seus ritos, festas e modos de celebrações para louvar São Benedito. Em Manaus, por exemplo, as manifestações para o santo estão ligadas ao Quilombo do Barranco de São Benedito, do bairro da Praça 14, cuja comunidade descende de negros maranhenses do século XIX.
Já na região do Baixo Amazonas e em Gurupá (PA), as festividades a São Benedito remontam ao século XIX, protagonizadas por comunidades negras, e contam com folias, ladainhas, danças e cortejos. Mas em Bragança, as tradições negras em torno de São Benedito remontam ainda aos tempos coloniais.
Oficialmente falando, a Irmandade do Glorioso São Benedito da vila de Bragança, então Estado do Grão-Pará e Rio Negro, foi instituída em 03 de setembro de 1798, por iniciativa de negros escravizados e libertos, através de compromisso firmado perante a Igreja Católica e os senhores brancos da vila.
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Quero receberÉ possível que celebrações para o santo fossem anteriores a esta data, passando despercebida pelo registro oficial. O que temos de concreto é que o culto e a festa para São Benedito em Bragança, estabelecidos a partir de 1798, revelam a organização e mobilização social desses sujeitos, que não estavam reduzidos ao jugo do cativeiro.
A criação e a manutenção dessa irmandade leiga de negros (pretos e pardos), que teve seu compromisso confirmado em 1853, é reveladora das formas e estratégias de associativismo da gente negra ao longo da História, sobretudo em Bragança. E podemos elencar a Marujada como uma das expressões dessa sociabilidade negra que atravessou e atravessa a realidade local, apesar dos tensionamentos e táticas de controle e embranquecimento da manifestação, e da própria irmandade.
Isso se seguiu no século XX, em meio a várias tensões entre a Irmandade e a Igreja Católica, como analisa Dário Benedito Rodrigues. Tanto que a Prelazia do Guamá entrou com ação judicial contra a Irmandade, solicitando a reintegração de posse da festividade e do patrimônio material acumulado pela mesma. O processo desenrolou-se entre 1969 e 1988, culminando com a extinção da antiga irmandade, mas a fundação de uma nova, como entidade civil sem fins lucrativos: a Irmandade da Marujada do Glorioso São Benedito de Bragança.
Apesar desses entraves que buscaram cercear a existência da Irmandade, e por extensão da Marujada, sua manutenção em outros termos jurídicos e as alianças e disputas com a Igreja para a promoção da Festividade de São Benedito nos fazem enxergar como diferentes espaços, coletivos e entidades constituídos pela gente negra resistiram e afirmaram seus legados sociais de luta, dando continuidade a saberes e práticas culturais que ajudam a definir uma identidade negra na região. Portanto, cair na armadilha colonial do branqueamento compulsório é invisibilizar esse passado-presente ainda pulsante e vívido em torno de seus sujeitos.
Recuperar esse histórico e seus sentidos visa provocar uma sensibilização local para fazer reconhecer a Marujada e a Irmandade como espaços sociais da gente negra. São saberes e fazeres afrodiaspóricos, em grande medida, que ajudam a caracterizar essa manifestação. E também auxiliam em um processo mais amplo de reparação histórica na Amazônia, de modo a fazer reconhecer os nossos legados e patrimônios em âmbito institucional (estadual e/ou federal) e, ao mesmo tempo, a nossa centralidade histórica para a formação do que hoje é o Brasil e a Amazônia.
Fazer o Estado olhar e reconhecer o conjunto de patrimônios afro-brasileiros e indígenas, que são majoritariamente imateriais (saberes e fazeres), é reivindicar acesso a políticas públicas de direito à memória que possam assegurar direitos e cidadania, sobretudo na preservação desses repertórios de conhecimento e historicidade, que estão profundamente atrelados a seus territórios de vida.
Esse é um caminho necessário e potencial para garantir formas de reparação histórica à população negra, que ajude a salvaguardar nossas múltiplas expressões de cultura que conectam passado, presente e futuro numa chave ancestral.
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