O início da maior revolução escrava das Américas completa 233 anos
Em agosto de 1791, contrariando as proibições locais, um grupo enorme de africanos escravizados e seus descendentes incendiaram a Ilha de São Domingos, despertando o maior pesadelo de todas as autoridades da América escravista: a revolução escrava.
Era noite de 22 de agosto quando, entre a tempestade que se aproximava, homens e mulheres se dirigiram à montanha Morne Rouge, localizada aos arredores da cidade de Le Cap, ao norte da Ilha. Muitos deles contrariavam não só as ordens dos seus senhores para que se mantivessem onde seus olhos pudessem alcançar, como também enfrentavam legislações da Ilha que proibiam o ajuntamento de pessoas escravizadas, sempre visto como algo ameaçador ao controle escravista.
Mas aquelas pessoas estavam decididas a celebrar suas divindades. As bocas miúdas davam notícias aos interessados sobre uma cerimônia de Vodu, palavra de origem incerta, mas que provavelmente remete ao território do antigo reino africano do Daomé, o que significava muito para os seus participantes.
Em sociedades escravistas, as celebrações africanas eram ora proibidas, ora toleradas. Essas proibições e autorizações funcionavam como um jogo - tão arriscado quanto violento - dos mandatários locais para tentar controlar milhares de pessoas escravizadas em seus territórios. Aconteceu que, mesmo sob o ultimato de punições severas prometidas pelas autoridades francesas, um número expressivo de pessoas negras estava decidido a festejar sua espiritualidade.
A Ilha de São Domingos era uma possessão francesa desde meados do século 17. Localizada no Caribe, não demorou muito para que a ilha despontasse internacionalmente por meio do açúcar, tendo a mão de obra escravizada como a sua principal força de trabalho. Sua prosperidade econômica foi tal, que essa colônia passou a ser conhecida como a "pérola do Caribe", desbancando o nordeste brasileiro açucareiro do mercado internacional. À altura daquela reunião, São Domingos tinha uma população de aproximadamente 500 mil pessoas pretas, cerca de 40 mil mulatos - muitos desses, livres - e por volta de 36 mil pessoas brancas. A proporção beirava 13 pessoas escravizadas para uma branca.
A deflagração da Revolução
Até então, mesmo com uma proporcionalidade desvantajosa, a população branca da ilha não se sentia inibida em aplicar a violência no cotidiano das grandes lavouras de cana de açúcar. Chicotadas, socos, chutes, estupros, separações de famílias pela venda ou pelo assassinato dos seus membros, privação de alimento, ferragens aos pés e às mãos, chantagens, marcações a ferro quente, cortes a ferro frio, escalpelações, fraturas, amputações… A violência constituía o dia-a-dia das pessoas negras em São Domingos.
Naquela noite de 22 de agosto, Dutty Boukman, um homem negro, capataz de uma das fazendas ao redor de Le Cap, conduziria a cerimônia na condição de papaloi, um cargo elevado entre os celebrantes do Vodu. Fora do culto, Boukman recebia ordens de senhores brancos para dispensá-las aos escravizados que administrava, por isso ele estava completamente ciente da gerência das violências empreendidas nas relações que se davam em toda a Ilha.
Reunidos sob fortes ventos que agitavam fogueiras e tochas, Bouckman ofereceu um suíno como sacrifício às suas divindades e, como nos conta Cyril Lionel Robert James, autor do famoso livro "Os Jacobinos Negros" (1938), declarou aos presentes o seguinte:
"O deus do branco o inspira ao crime, mas o nosso deus nos pede para realizarmos boas obras. O nosso deus, que é bom para conosco, ordena-nos que nos vinguemos das afrontas sofridas por nós. Ele dirigirá nossos braços e nos ajudará. Deitai fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar, e escutai a voz da liberdade, que fala para os corações de todos nós".
A despeito das inúmeras tentativas de insurreições sufocadas em várias partes da Ilha anos antes, aquela, deflagrada por Bouckman, seria diferente. Depois de dançarem e cantarem às suas entidades, homens e mulheres desceram da montanha decididos a pôr fim à opressão que sofriam. Adentraram às casas dos seus senhores e vingaram as inúmeras violências que sofriam. Deitaram fogo nos canaviais, destruíram os engenhos. O fogo lambia e consumia tudo pela frente. Ouviam-se gritos de liberdade e colunas de fumaça ao longe. Tudo era horizonte flamejante, medo, coragem e esperança.
As autoridades da ilha não conseguiram conter o rompante revolucionário. Nem bacamartes, nem garruchas, tampouco os chicotes foram capazes de pôr freio ao avanço de homens e mulheres negras. Em poucos dias, propriedades e regiões inteiras foram reduzidas a cinzas.
A França pós-revolucionária não foi capaz de deter a força insurreta deste lado do Atlântico. Com sua declaração de Independência, em 1804, o país passou a se chamar Haiti, que tem origem no Taíno, uma língua indígena que leva o mesmo nome do seu povo que habita o Caribe, e significa "terra de altas montanhas", tal qual Morne Rouge, onde uma celebração de Vodu deu início ao levante que se espraiou por toda aquela colônia.
Apesar do processo revolucionário se findar em 1804 e a França resistir em reconhecer a perda da sua colônia mais próspera impondo-lhe sanções e sabotando suas estratégias de desenvolvimento, os franceses admitiram a independência do Haiti mais tarde, em 1825. As consequências das pesadas retaliações políticas e econômicas aplicadas à ilha, entre os séculos XVIII e XIX, retumbam na sociedade haitiana até os dias de hoje.
Os ventos revolucionários e o temor do haitianismo
A Revolução Haitiana intensificou temores em todo o mundo escravista de então. Ideias vistas como perniciosas pelas classes senhoriais, germens de insurreições, faíscas revolucionárias entre a população escravizada foram cunhadas como crime de "haitiainismo". A Ilha que aboliu a escravidão e declarou a sua independência por meio de uma revolução comandada e executada por pessoas escravizadas passou a ser um exemplo ameaçador para as autoridades de todo o continente americano, como bem demonstram as pesquisas de Bethânia Pereira e Marcos Queiroz.
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Quero receberAs autoridades do Brasil tentaram reprimir ao máximo notícias e outras informações que vinham da ilha revolucionária, chegando a monitorar negros vindos de lá e que levavam ao peito tatuagens com o busto de Jean Jacques Dessalines, o ex-escravizado que havia se tornado o "Imperador dos Negros da Ilha de São Domingos", de acordo com Sidney Chalhoub.
A despeito das tentativas dos mandatários brasileiros de silenciar ideias e sufocar insurreições, tivemos a Revolta de Carrancas, em Minas Gerais (1833), a Revolta dos Malês, na Bahia (1835), a Cabanagem, no Pará (1835-1840), a Balaiada, no Maranhão (1838-1841), além de inúmeros levantes de menores proporções e repercussões em todo o Brasil. Neste mês e ano, em que a Revolução Haitiana completa 233 anos, é preciso reconhecer a força do seu lema: se aqui é "Independência ou morte", lá é "A união faz a força"!
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