O que o pioneirismo de mulheres negras nas Olimpíadas tem a nos ensinar?
O título dessa reflexão é inspirado na entrevista com Daiane dos Santos realizada por Maju Coutinho na última edição do Fantástico (28/08), na TV Globo. Ao se reportar à ginasta, a jornalista relembrou os grandes feitos da atleta negra gaúcha e seu pioneirismo em termos de premiação em Olimpíadas.
No entanto, há um longo caminho nesse processo, árduo e, não raras vezes, muito caro, como nos fez compreender a desistência nos Jogos Olímpicos de Tóquio de outro grande nome do esporte mundial, dos Estados Unidos, a também ginasta Simone Biles. O que nos move aqui, além da alegria, é um questionamento sobre qual o preço do pioneirismo de mulheres negras e o que traços em comum dessas histórias nos permitem compreender.
Das margens ao centro
A abertura dos jogos de Paris possibilitou que parte considerável do mundo pudesse se deparar com nomes invisibilizados pela história. E ainda que o foco estivesse sobre a própria história francesa, que, bem sabemos, ocupa um espaço de destaque na configuração da história mundial, deparamo-nos com o encobrimento proposital advindo do poder masculino. Ora, os grandes nomes que geralmente aprendemos no ensino de história no Brasil, são muito mais de homens que de mulheres. Mesmo para a França isso não é diferente. Por isso, muito provavelmente grande parte do público brasileiro que acompanhou a abertura pode ter se deparado pela primeira vez com os nomes e fragmentos das histórias de heroínas como Alice Guy-Blaché e Paulette Nardal, para ficarmos apenas em dois dos dez homenageados, selecionando as que mais se aproximaram dos nossos dias, e, assim, poderiam ser mais conhecidas. As estátuas representando essas mulheres foram dispostas às margens do Rio Sena, mas no centro da história que então se queria mostrar ao mundo.
Sair das margens para ocupar o centro, seja em termos de história enquanto o que é ensinado, seja em termos de experiências do presente, é ainda um fato incomum. Excepcional. É também por isso que as linhas que aqui compartilhamos estão imersas na alegria, certamente compartilhada por muitas outras pessoas que têm vibrado com as atuações das nossas atletas. É seguro afirmar que estamos vivenciando um momento de grandes transformações, em que as mulheres negras estão disputando e por vezes vencendo a batalha de ocupar lugares fora das margens, inclusive fora do esporte.
Rayssa Leal, no skate, e a equipe feminina de ginástica alcançaram a medalha de bronze. Elas saíram da margem, por meio ora de um esporte tradicionalmente masculino e até 2020 excluído dos esportes olímpicos, ora de um esporte de altíssimo rendimento que exige uma preparação de anos e consecutivamente de patrocínio, ou seja, uma estrutura muito mais ampla que apenas as habilidades individuais.
Ainda que por força do racismo o esporte tenha se consolidado como um espaço de enorme presença de pessoas negras, tendo em vista a ideia racista de que pessoas negras não estariam aptas à reflexão e à atuação em áreas como política, medicina e advocacia, por exemplo, esse mesmo esporte relegou as mulheres às margens. O atleta por excelência seria o homem.
No entanto, ainda que seus feitos sejam excepcionais, a natureza do esporte, que exige uma equipe não apenas para os esportes coletivos, mas para a preparação dos atletas, nos mostra que não estamos nos deparando com histórias isoladas. Trata-se de algo que pode vir a se tornar comum se houver investimento e cultura de formação para o esporte.
Para além do esporte
Os impedimentos observados no esporte não se restringem a ele, mas a transgressão das barreiras de gênero e de raça também não. A atleta Simone Biles, por exemplo, precisou lidar com a adicção de seus pais, responsáveis por entregá-la ao serviço de adoção, vindo a ser adotada por seus avós. Rebeca Andrade conseguiu tornar-se a atleta premiada que é em uma família liderada por uma mãe solo empregada doméstica. Pequenos fragmentos como esses mostram que as barreiras são inúmeras, advêm de condições de adversidade e desigualdade social, que atingem sobretudo famílias negras e ainda mais especificamente mulheres.
Mas nos ensinam também sobre a importância de desconstruirmos uma falácia racista e extremamente presente de que as famílias negras ou não existem ou são restritas ao estigma da desestrutura. Os estudos históricos têm sido muito enfáticos em demonstrar esses elementos, tanto em pesquisas voltadas ao Tempo Presente, como demonstra a tese recentemente defendida pela historiadora Carol Carvalho, junto à Universidade do Estado de Santa Catarina, ao apresentar a liderança de mulheres negras, com diversas formações, dentro das escolas de samba de Florianópolis, quanto para períodos mais recuados, incorporando o fim da escravidão e o imediato pós-abolição, como demonstram as dissertações de mestrado de Taína Santos, pela Universidade de Campinas, sobre trabalhadoras negras no emprego doméstico em Campinas, e de Karine Damasceno, sobre a sociabilidade e a solidariedade entre mulheres trabalhadoras, incluindo negras e não negras, em Feira de Santana; bem como acerca do período imperial, como o trabalho de Camillia Cowling sobre a experiência de conquista da liberdade por mulheres negras em tempos de escravidão tanto em Cuba como no Brasil.
Os exemplos acionados nos permitem atentar simultaneamente para a importância da racialização do gênero (afinal ser mulher não significa não ser atravessada por outros marcadores sociais, e aqui mencionamos raça, mas há muitos outros, como a classe, por exemplo), dos processos históricos nos quais essas experiências sociais são vividas e a perspectiva de encobrimento de histórias, que quando muito aparecem apenas como exceção e advindos de acessos de classes favorecidas.
Ao longo da cobertura na mídia brasileira dos Jogos Olímpicos de Paris o uso de expressões relacionadas a pioneirismo tem sido frequente. Talvez o fato de o futebol masculino, esporte mais popular e tradicional no Brasil, não ter se classificado possa ter contribuído para uma diminuição de reportório, mas isso importa pouco aqui. Os exemplos que estamos acompanhando nos últimos dias nos permitem aprender sobre lugares outros a serem ocupados por aquelas que, tradicionalmente, na história brasileira, estavam apenas para servir e cuidar.
Isso não é algo banal. Que as novas gerações possam não apenas reconhecer as pioneiras da nossa época, mas sobretudo aceitar passar esse bastão para as gerações que estão chegando de forma a contribuir efetivamente para presenças plenas com amplo potencial para ter suas histórias narradas. De forma a resultar em um letramento histórico que se contraponha à manutenção das desigualdades assentadas em estruturas sociais que hierarquizam.
O pioneirismo das mulheres negras nos convoca a repovoar os imaginários acerca da história do Brasil, das Américas… do mundo! Nos permitindo olhar para nossa própria história a partir de um todo, que se espraia para muito além da atleta e evidencia o peso da estrutura. É nessa estrutura que queremos cada vez menos vermos o racismo e o sexismo como as molduras a definir as (im)possibilidades. Que possamos seguir numa crescente de reposicionamento da história de pessoas brilhantes, mas que não são únicas, projetando futuros muito mais plurais e possíveis para todas, todos e todes nós!
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