O atleta negro brasileiro que enfrentou o nazismo nas Olimpíadas de 1936
A poucos dias da abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, em uma Europa cada vez mais temerosa com a agenda política de forças alinhadas à extrema direita, a competição de 1936 tem muito a nos ensinar.
Além de ter sido realizada em Berlim, capital da Alemanha nazista de Adolf Hitler, a competição internacional testemunhou a ascensão de um dos mais brilhantes esportistas de todos os tempos: o atleta negro estadunidense James Cleveland Owens, conhecido como Jesse Owens.
Ele desafiou o nazismo com suas quatro medalhas de ouro no atletismo, derrubando a crença hitlerista na insignificância das habilidades da população negra que apregoaria a sua inferioridade racial. Mas do que pouco se fala é que um brasileiro, também negro, esteve ao lado de Owens nesse confronto.
Seu nome era José Bento de Assis Junior, mais conhecido como Bento de Assis. Nasceu na capital paulista em 28 de fevereiro de 1914. Com muito custo, competindo pelo Vasco da Gama, o velocista e saltador reuniu as credenciais necessárias para integrar a delegação brasileira composta por 73 atletas, que embarcaram com destino às Olimpíadas de Berlim.
Com apenas 22 anos de idade, esse atleta conheceria uma Europa orgulhosa da sua branquitude e do seu empenho colonial instrumentalizado pela violência na África. Certamente, entre as dezenas de competidores brasileiros, Assis não era o único negro a enfrentar esse desafio.
Também corredor como Owen, Bento de Assis não conquistou medalha naquela competição - assim como toda a delegação brasileira. No entanto, a sua simples presença na competição, tal qual a de Owen e outros negros, serviria para confrontar Hitler e toda a Alemanha ariana.
A habilitação de atletas negros para os jogos naquele ano significava a ruína dos parâmetros tidos como "científicos" do racismo, argumento usado pelos alemães para tentar comprovar a sua vanguarda civilizacional.
Naquele ano, os partidários de Hitler tiveram de testemunhar vários esportistas negros nas disputas. No ano seguinte, Bento de Assis, além de ter sido escolhido para empunhar a bandeira do Brasil na abertura dos jogos latino-americanos, sagrou-se campeão em quatro modalidades diferentes: na corrida dos 100 e 200 metros rasos, no revezamento 4x100 e 4x400 metros.
A falta de conhecimento sobre a trajetória de Bento de Assis comprova como o racismo também pode se manifestar pela negação da memória, na manifestação deliberada e sistemática da política de esquecimento em relação às pessoas negras no Brasil.
Atletas negros contra o racismo transnacional
Jesse Owens nasceu em Oakville, Alabama, Estados Unidos, em setembro de 1913. Seu estado havia abraçado as leis de Jim Crow, um conjunto de leis segregacionistas, que conduzia ao linchamento até a morte de pessoas negras e a separação social entre negros e brancos desde o final da Guerra Civil estadunidense, em 1865 - inclusive proibindo casamentos interraciais.
Sob Hitler, o nacionalismo alemão escancarou o credo na pureza racial do seu povo ariano, estabelecendo uma hierarquia entre os diversos grupos raciais do mundo, na qual o povo germânico ocuparia o topo da ordem, enquanto os negros constituiriam a sua base.
Por este motivo, ao lado dos judeus, uma população negra alemã ainda pouco estudada, também sofreu as perseguições e os assassinatos promovidos pelo nazismo. Antes disso, ao longo da primeira década do século 20, a Alemanha já promovia o extermínio colonial de vários povos africanos no território da Namíbia.
Notado desde o ensino médio, Owens foi selecionado para disputar as Olimpíadas na Alemanha hitlerista, representando um país que, não muito diferente do Terceiro Reich, usava a crença na falta de civilidade de pessoas negras para excluí-las, criminalizá-las e matá-las.
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Quero receberApesar da ambiguidade de sentimentos entre lutar por um país que não o desejava - num país nazista -, mas mesmo assim representá-lo, Jesse Owens conquistou quatro medalhas de ouro e quebrou o recorde mundial das 100 jardas, com o tempo de 9s40. Era o "maravilhoso atleta de cor que a América festejará", como o carioca Jornal dos Sports estampava em primeira página, em 23 de agosto de 1936.
Owens, que inspirou o filme Raça (2016), não estava sozinho. Outro negro estadunidense, Cornelius Johnson, foi seu colega de delegação e enfrentou a mesma situação desconfortável e desafiadora de derrubar toda uma ideologia racista que estruturava o Regime de Hitler. Johnson conquistou uma medalha de ouro no salto em altura, atingindo a marca de 2,03 metros.
Paris 2024
O emblemático punho cerrado contra o racismo dos atletas negros Tommie Smith e John Carlos, em 16 de outubro de 1968, nas Olimpíadas do México, e a recente luta de Vinícius Júnior no combate aos ataques racistas na Espanha nos põem em alerta para possíveis ações violentas.
Há poucos meses dos jogos, Kylian Mbappé, grande jogador negro da seleção francesa de futebol, fez um apelo à juventude do seu país para que evitasse a ascensão da extrema-direita nas urnas. O que foi atendido e possível graças à união do centro e da esquerda da França. A declaração de Mbappé revela o temor que discursos ufanistas possam levar a um acirramento das exclusões, a despeito de medidas contra a imigração e hábitos culturais de imigrantes, como a tentativa de proibição do uso do hijab ainda na França de Nicolas Sarkozy, em 2009.
Neste ano, teremos uma enorme quantidade de atletas negros dando continuidade à presença de Owens, Johnson, Bento de Assis, Tommie Smith e John Carlos. Nomes como Rebeca Andrade, na ginástica; Alison dos Santos, no atletismo; Isaquias Queiroz, na canoagem; Ana Marcela Cunha, na maratona aquática; Rayssa Leal, no skate, e tantos e tantas outras levam adiante o legado da luta pela igualdade. Na coragem de enfrentar seja o que for, sendo quem se é.
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