Além do futebol: Guerra do Paraguai foi palco do racismo contra brasileiros
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Boa parte do Brasil acompanhou a repercussão do ataque racista contra o jogador do Palmeiras Luighi durante uma partida contra o Cerro Porteño, no Paraguai, pela Libertadores Sub-20.
Um agravante na situação ocorreu nesta segunda, quando o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, disse não imaginar a Libertadores sem a participação dos times brasileiros, pois "seria como Tarzan sem Chita", se utilizando da imagem de um homem branco cuja amiga é uma macaca.
Esses episódios são repugnantes e criminosos. Infelizmente, os ataques racistas contra brasileiros no Paraguai são antigos.
Ao longo da guerra entre os dois países latinos (1864-1870), parte da imprensa paraguaia atacou a composição racial dos soldados brasileiros.
Em geral, esses jornais recorriam a representações racistas e caricatas de pessoas negras, destacando lábios grossos e a pele retinta, à semelhança do Jim Crow, nos Estados Unidos, além de difundir a imagem de brasileiros como macacos, destituindo as suas humanidades, equiparando-os aos primatas.

Guerra do Paraguai foi promessa de liberdade para negros escravizados no Brasil
Vendo que o conflito já durava mais do que o esperado e que as finanças do país já sentiam os efeitos da guerra, Pedro II e seus ministros acharam por bem aumentar o número dos soldados por meio de escravizados, a quem se prometia a liberdade, uma vez que se voluntariassem para o combate em nome do Brasil, conforme Decreto de 6 de novembro de 1866.
Com o objetivo de escaparem da escravidão, norteada por parâmetros que viriam a ser, mais tarde, conhecidos como racistas, na medida em que os escravizados no Brasil eram africanos e seus descendentes, identificados, violentados e marginalizados pelos seus traços físicos e cor de pele, muitos cativos fugiram dos seus senhores e foram para o campo de batalha.
O historiador Ricardo Salles, referenciando dados levantados pelo também historiador Robert Conrad, chegou a afirmar que o número total de escravizados que se voluntariaram para lutar no conflito chegou a somar cerca de 5,5% de todo o efetivo do Exército brasileiro, estimado em aproximadamente 139 mil homens.
Já encaminhando para a vitória das tropas brasileiras e como forma de punição ao Paraguai, o príncipe consorte do Brasil, o Conde d'Eu, aboliu a escravidão naquele país, embora o país pelo qual combatera só viria a extinguir o cativeiro em 13 de maio de 1888, sob forte pressão dos próprios escravizados e aliados abolicionistas.
Aqui, vale ressaltar: somente em 2022 o Paraguai sancionou uma lei contra o racismo, a Lei 6.940, que prevê apenas multa em caso de racismo.
A responsabilidade da América Latina
Obrigados a lidar com parte expressiva da população negra, a elite brasileira, desde o século 19, vem elaborando ora dissimulada, ora de forma mais explícita, formas de domínio sobre essas populações, mediadas pela inferiorização de negros e indígenas.
Neste exercício, intelectuais, políticos e artistas, abraçaram a ideologia da "democracia racial", que ganhou tons de ciência com a publicação de Gilberto Freyre, "Casa-Grande & Senzala", em 1933.
Na prática, essa ideologia que prega a harmonia de uma sociedade brasileira sem racismo foi utilizada - sobretudo durante a ditadura militar (1964-1985) - para negar as políticas de marginalização, criminalização e outras violências contra pretos e pardos brasileiros, também enfrentadas por outras populações negras na América Latina.
Estudos como os das historiadoras Erika Denise Edward, para a Argentina, e Fernanda Oliveira, para o Uruguai, mostram como populações de cor foram submetidas a políticas de precarização da cidadania, toda a sorte de agressões e apagamentos históricos, com o objetivo de consagrar suas identidades nacionais a partir da raça branca.
O ato de racismo contra os jogadores palmeirenses escancara a violência racial para além do futebol europeu, como aconteceu com Vini Júnior, na Espanha, em 2023, ao ser atacado com xingamentos racistas pela torcida do Valencia.
É preciso que os clubes brasileiros exijam punições mais duras contra os torcedores que exercerem práticas racistas, indo além de multas pouco expressivas, se comparadas às receitas dos times, e da proibição de torcidas nos estádios.
Toda a América é testemunha secular do que crenças racistas são capazes de promover. Elas questionaram a humanidade dos nativos, dizimaram etnias inteiras, escravizaram outras, violentaram suas mulheres, saquearam suas riquezas, sequestraram africanos do seu continente, os submeteram à fome e à sede nos porões de navios, os forçaram ao trabalho sobre-humano, separaram suas famílias.
Não só o Brasil, mas toda a América Latina tem agora a oportunidade de, sob circunstâncias deploráveis, discutir e combater o racismo dentro e fora de campo.
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