Witzel e STJ: devemos trocar juízes e togas por justiceiros e porretes?
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
O Superior Tribunal de Justiça deve referendar nesta quarta-feira uma das mais claras e graves agressões à democracia desde a... redemocratização do país, por estranha que pareça a formulação: a aprovação, pela Corte Especial, do afastamento do governador Wilson Witzel, do Rio. Vamos ver o que virá.
Dias Toffoli, presidente do Supremo, está com um pedido em mãos de cassação da liminar concedida pelo ministro Benedito Gonçalves. É provável que considere a petição prejudicada depois da decisão do colegiado do STJ. Não sei o que fará a defesa de Witzel. Entendo que ainda cabe recurso.
Infelizmente, numa decisão equivocada, o Supremo entendeu em 2017, no julgamento da ADI 5.540, que não se faz necessária a autorização da Assembleia Legislativa para processar e julgar o governador por crime comum perante o STJ.
Existe tal exigência no Artigo 147 da Constituição do Rio. É bem possível que mecanismo semelhante esteja presente nas respectivas Constituições de todas as unidades da federação. Até porque acabam mimetizando, o que parece desejável, a Constituição Federal, que requer a concordância de dois terços da Câmara para que se autorize o Senado a abrir processo por crime de responsabilidade contra o presidente ou para que o Supremo possa processá-lo por crime comum.
Com a votação do Supremo, tal exigência se tornou sem efeito. Mas notem: em tal votação, o Supremo decidiu que o STJ pode aceitar uma denúncia sem a prévia anuência da Assembleia.
Ocorre que se está a falar de outro assunto aqui. Witzel foi denunciando em 28 de agosto, mesmo dia do afastamento e das operações de busca e apreensão. Ele está sendo afastado do governo por seis meses em razão de uma delação premiada em processo no qual nem sequer foi ainda ouvido.
É preciso que o Supremo se debruce com urgência sobre a questão. Existe uma ação que pede disciplinamento na questão, cujo relator é Edson Fachin, do STF. O mais punitivista de todos os membros da Corte — uma espécie de Torquemada de plantão e de procurador no tribunal das alas mais extremistas do Ministério Público — terá interesse em resolver logo a questão?
A defesa de Witzel, creio, terá de apelar de novo ao Supremo. Afinal, se este afastou parte do que prevê o Artigo 147, restam os dois incisos do seu Parágrafo 1º, a saber:
§ 1º O Governador ficará suspenso de suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Superior Tribunal de Justiça;
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pela Assembleia Legislativa.
Notaram? Para que haja a suspensão, é preciso que a denúncia seja aceita pelo Superior Tribunal de Justiça. E isso não aconteceu. O endosso à liminar de Benedito Gonçalves não vale por uma denúncia aceita.
Ora, ora... Ninguém é ingênuo. Criado esse clima, deve-se supor que uma denúncia seria aceita com razoável facilidade, não é mesmo? Mas por que ela não pode ser apresentada já? Respondo: porque nem mesmo existe investigação que a sustente.
ATENÇÃO PARA ESTA PERGUNTA: QUER DIZER QUE SE PODIA AVALIAR A DENÚNCIA PORQUE, AFINAL, A DEFESA NEM TINHA SIDO NOTIFICADA, MAS SE CONSIDERA QUE HÁ ELEMENTOS SUFICIENTES PARA O AFASTAMENTO? AINDA QUE MAL PERGUNTE, COM BASE EM QUE LEI?
A ser assim, todos os governadores estão sujeitos a ser afastados de seus respectivos cargos a qualquer momento, bastando, para tanto, que alguém resolva fazer o papel de delator, apresentando meia-dúzia de evidências de eventuais crimes menores, sustentando que eles são apenas os indícios dos maiores. E pronto! E assim se joga no lixo o direito de defesa.
Escrevi ontem e repito: um sistema em que é mais fácil depor um governador do que impor medidas cautelares a um deputado estadual está com um sério problema.
O Supremo tem de se mobilizar imediatamente para resolver essa questão, seja no âmbito da provocação feita pelo PSL, petição que está com Fachin, seja por intermédio do recurso, que certamente haverá, movido pela defesa de Witzel. E é preciso que a decisão tomada seja disciplinadora e valha também para o governador. Enquanto, ao menos, o Congresso não se debruça sobre o tema.
O Brasil é uma República Federativa, mas é, como se vê, manquitola. Se o Supremo entendeu que as Constituições estaduais não podem exigir a aceitação prévia da Assembleia para a admissão de um processo pelo STJ, pergunto: se o Congresso aprovar uma emenda com esse conteúdo, ela teria sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo? Mas com base em que pressuposto?
Ah, sim: na votação daquela ADI, que teve Fachin como relator, decidiu-se:
"não há necessidade de autorização prévia da Assembleia Legislativa para o recebimento de denúncia e instauração de ação penal contra Governador de Estado, por crime comum, cabendo ao Superior Tribunal de Justiça, no ato de recebimento da denúncia ou no curso do processo, dispor, fundamentadamente, sobre a aplicação de medidas cautelares penais, inclusive afastamento do cargo".
A, com a devida vênia, malandragem está na interpretação das palavrinhas "no curso do processo". Certamente se entendeu que, uma vez aceita a denúncia — e, pois, depois dela —, o STJ poderia afastar o governador, caso não o tivesse feito no ato da aceitação, mesmo antes do julgamento, desde que algo grave o justificasse.
Em vez disso, estão a fazer o quê? O "no curso do processo" está sendo usado para depor um governador ao mesmo tempo em que se realizam as diligências primeiras de uma investigação, como mandado de busca e apreensão, por exemplo. É um descalabro!
Senhores magistrados do STJ e do STF: será que vocês se sentem confortáveis, cônscios de que estamos todos no ambiente do "fumus boni juris" — a fumaça do bom direito, o sinal do bom direito, o exercício regular do direito — afastando do cargo um governador que nem sequer prestou seu primeiro depoimento?
É claro que não!
Estamos todos, isto sim, respirando a fumaça toxica, envenenada, do justiçamento, que está corroendo a democracia brasileira.
Olhem através da janela de seus respectivos tribunais, senhores magistrados, lá para a Praça dos Três Poderes. A desordem legal e institucional pôs no Palácio do Planalto não apenas o negacionista da pandemia. Agora, ele nega também as virtudes impositivas da vacina.
Não preciso repetir aqui as toneladas de reservas que tenho a Witzel. E não estou sustentando a sua inocência. Essa não é a questão. Ademais, ministros do STJ e do STF só carregam aquela toga nos ombros porque a eles cabe a garantia do devido processo legal. E é por meio do devido processo legal que se faz Justiça.
Não fosse assim, não precisaríamos contar com juízes e suas togas. Bastariam os justiceiros e seus porretes.
CORREÇÃO
O texto original afirmava que a denúncia não havia sido ainda apresentada. Apresentada foi. O que importa -- e este é o objeto do texto -- é o fato de o afastamento preceder a aceitação da mesma. Leia outro post a respeito.