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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Petro é eleito; até direita da Colômbia dá aula à direita chucra do Brasil

Francia Márquez e Gustavo Pietro:  vice-presidente e presidente eleitos da Colômbia, respectivamente. É a primeira vez que uma pessoa negra chega ao topo do Poder Executivo; é a primeira vez que a esquerda leva a Presidência. Líderes de direita reconheceram o resutlado sem contestação - Reprodução/Twitter
Francia Márquez e Gustavo Pietro: vice-presidente e presidente eleitos da Colômbia, respectivamente. É a primeira vez que uma pessoa negra chega ao topo do Poder Executivo; é a primeira vez que a esquerda leva a Presidência. Líderes de direita reconheceram o resutlado sem contestação Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

20/06/2022 07h04

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A Colômbia elegeu Gustavo Petro presidente, o primeiro esquerdista da história a chegar ao posto. Trata-se de um evento, por várias razões, "formidável". E não escolho tal palavra por acaso. A etimologia nos diz que "formidabilis" quer dizer "terrível", "temível", e tal sentido se conserva em português, para uso de ninguém. Cedeu ao "magnífico", ao "que causa admiração", ao "inusual". Ou vocês, leitores, lascam um "formidável!" quando estão com medo? Sim: acho que o resultado é muito importante para o Brasil. Direi por quê.

O que há de admirável, magnífico e inusual, além de Petro ser o primeiro esquerdista que vai ocupar a cadeira presidencial, depois de se eleger senador duas vezes e prefeito de Bogotá? Vamos a alguns dados.

1: Petro é um ex-guerrilheiro. Ele, de fato, aderiu à luta armada aos 17 anos. Fez parte do M-19. Foi preso em 1985, aos 25 anos. Ficou 18 meses na cadeia e diz ter sido torturado.

2: No ano de sua prisão, o M-19 perpetrou um atentado terrorista "formidável" no sentido de "terrificante": invadiu o Palácio da Justiça no dia 6 de novembro e fez 350 pessoas reféns. A retomada do prédio foi comandada com notável brutalidade pelo Exército no dia seguinte. Morreram 101 pessoas — incluindo 12 dos 28 magistrados da Corte. Ainda há 13 pessoas desaparecidas.

3: Petro chegou a ser acusado de envolvimento com o ataque. Depois se provou ser falso. Na verdade, uma parte do M-19 negociava com o governo a renúncia à guerrilha.

4: Em 1990, o M-19 abandona oficialmente a luta armada.

5: Petro se elegeu agora por uma frente chamada "Pacto Histórico", que reúne correntes de esquerda e também centristas e até alguns conservadores.

6: A vice eleita é a advogada negra Francia Márquez, ex-empregada doméstica.

7: Também as Farc depuseram armas na Colômbia, mas ainda existe um grupo guerrilheiro ativo: o Exército de Libertação Nacional. Na campanha, Petro afirmou que vai procurar pôr fim à guerrilha.

8: A vitória foi apertada. Com 99% dos votos apurados, Petro obteve 50,44% dos votos, contra 47,31% do populista Rodolfo Hernández.

DIREITA NÃO FALOU EM GOLPE
É claro que a direita e a extrema direita procuraram demonizar Petro em razão do seu passado, embora esteja há muito na política institucional e tenha sido senador duas vezes e prefeito de Bogotá. Tão logo ficou claro que havia vencido o pleito, o derrotado, Hernández, gravou um vídeo em que afirmou:
"Colombianos, hoje, a maioria dos cidadãos e cidadãs que votaram escolheram outro candidato. Como disse reiteradamente, aceito o resultado, como deve ser se desejamos que nossas instituições sejam firmes".

O ex-presidente Álvaro Uribe, uma das principais lideranças de direita do país, mas cujo partido foi muito malsucedido neste pleito, afirmou:
"Para defender a democracia, é preciso respeitá-la. Gustavo Petro é o presidente. Deixe um sentimento nos guiar: Colômbia primeiro."

Iván Duque, o atual presidente, que conduz um mandato notavelmente desastrado, escreveu:
"Liguei para Gustavo Petro para parabenizá-lo como presidente eleito dos colombianos. Combinamos de nos reunir nos próximos dias para iniciar uma transição harmoniosa, institucional e transparente."

É claro que vocês entenderam aonde quero chegar: a ninguém ocorreu pôr em dúvida o sistema de votação, embora seja, em tese ao menos, suscetível a fraudes, o que o nosso não é. Militares andaram reclamando pelos cantos, mas ninguém relevante levantou a voz contra as eleições.

Cotejem o passado de Petro com o de Lula e o do M-19, a que ele pertenceu, com o do PT. Nem o ex-presidente nem sua legenda defenderam teses disruptivas. Criado ainda durante a ditadura, o partido brasileiro sempre optou pela luta política. Também por aqui se elegeu Dilma, ex-membro de um grupo guerrilheiro. Nem os militares a acusaram de ter participado de ações armadas.

Na insanidade que toma conta de alguns setores no Brasil, até João Doria era chamado de protocomunista... Vejam a que distância Jair Bolsonaro, que parece decidido a dar um golpe de Estado, está do mundo real. Também a elite colombiana, por seus representantes, percebe que é preferível um governo progressista a desastre golpista. Por aqui, há canalhas piscando para o caos.

FRANCIA MÁRQUEZ
Francia Márquez, também expressa o momento notável que vive a Colômbia. O país tem hoje uma vice presidente: Marta Lucía Ramírez. A exemplo de Duque e do próprio Petro, pertence aos 20% de brancos do país. Apenas 4% dos colombianos têm a pele preta como Francia. Os "euroafricanos", chamados de "pardos" pelo IBGE aqui no Brasil, compõem 14% da população, e os cafuzos (mestiços de negros com indígenas), 3%. A maioria da população é composta pelos "euroameríndios": descendentes de indígenas e europeus, realidade estranha para o Brasil. É bem verdade que há muitos descendentes de indígenas no país que estão, digamos, escondidos entre os ditos "pardos".

A pobreza na Colômbia é fabulosa e se estima que alcance, depois da pandemia, quase 40% dos 51 milhões de habitantes. Depois de a economia ter encolhido quase 7% em 2020, cresceu 10,6% no ano passado e roda a mais de 6% neste ano, com inflação menor do que a do Brasil — pouco mais de 10% — e desemprego, como o nosso, pouco superior aos 11%.

A recuperação não foi suficiente para conter protestos massivos contra o governo, degenerando, muitas vezes, em violência. Duque é considerado pelos analistas locais um líder notavelmente inábil. Mesmo a direita do país acabou por se distanciar daquele que nunca soube comandar.

AMÉRICA LATINA DE ESQUERDA?
Os paranoicos de um Brasil paralelo já começam a fantasiar: Nicolás Maduro na Venezuela; Alberto Fernández na Argentina; Luiz Arce na Bolívia; Gabriel Boric no Chile; Gustavo Petro na Colômbia; mais lá para cima, há López Obrador no México... Quem sabe Lula no Brasil! Olhem a Internacional Esquerdista tomando a América Latina!

É uma burrice. Maduro é um ditador, ainda que boa parte da oposição que enfrenta não seja muito melhor do que ele. Isso não o torna um democrata. O governo de Fernández está longe de ser um caso de sucesso, mas segue o padrão da democracia argentina. Arce, até agora, joga segundo as regras. Quem deu um golpe na Bolívia, não faz muito, foi a direita. Boric, num país com mandato de quatro anos e sem chance de reeleição, tem é de tentar tornar a democracia mais eficiente. Petro há muito renunciou às ilusões armadas. Lula busca o centro político e já governou o país duas vezes. Não consta que tenha se desentendido com o capital.

"Ah, mas há um vento progressista no continente..." Queridos, ventos movem moinhos e hélices de usinas eólicas, não metáforas. Sabem um dos nomes do "vento"? Pobreza! A elite de todos esses países é tão generosa na distribuição de riquezas como a brasileira. Tende a achar que o povo lhe deve o voto por fidelidade espiritual. Parece que o prato com pouca comida está indo às urnas.

IMPORTÂNCIA PARA O BRASIL
É inegável que, em todos esses casos, não ocorreu aos derrotados fomentar golpes de Estado. Também as respectivas forças militares se mantiveram dentro da lei. E, então, há de se destacar a Colômbia.

Dados os países citados, Petro é o que tem a biografia mais, digamos, inflamada. Participou efetivamente da luta armada, à exceção dos demais, que sempre se dedicaram à política, com mais dureza ou com menos. E, ainda assim, não se ousa, na Colômbia, falar contra o resultado das urnas porque se tem noção do quanto isso custaria para o país. E olhem que uma guerrilha ainda atua por lá.

Vejam que coisa: as Forças Armadas brasileiras eram consideradas as mais disciplinadas da América do Sul mesmo quando o subcontinente era um valhacouto de ditadores. Foram até menos assassinas do que as outras...

Hoje em dia, há repetidos exemplos de submissão dos militares da região à vontade das urnas. Indague-se: que país desponta como um mau exemplo de agitação eleitoral nos quarteis e de tentação diruptiva? Justamente o Brasil! Perguntem quantos militares, nos países citados, foram bulir com autoridades responsáveis por eleições... A exceção é mesmo a Venezuela. É isto: em alguma medida, o presidente que nos governa está mais próximo de Maduro do que todos os outros esquerdistas. E sei que agora alguns da esquerda vão reclamar... Tenham paciência! Livrem-se de alguns fetiches e de ditadores de estimação.

A vitória de Petro e a reação da direita colombiana, que acatou o resultado das urnas, sem nem sombra de agitação militar, evidenciam o atraso em curso no Brasil. E também servem de advertência a alguns inquietos de uniforme e a pistoleiros civis dispostos a financiar aventuras: quanto tempo duraria?

De resto, convém não esquecer: as consequências sempre vêm depois.

Quando até a direita da Colômbia dá aula à direita chucra brasileira, dá para imaginar o padrão da canalha.