Reinaldo Azevedo

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Opinião

EUA decidem hoje tamanho da crise. Ou: Sobre fascistas e colaboracionistas

Os Estados Unidos marcam nesta quarta o seu compromisso com uma crise. Pode ser de curta duração, na hipótese de o republicano Donald Trump perder a eleição. Pode ter prazo indeterminado, sabe-se lá com quais consequências, se vencer.

Aqui, à distância, não nos damos conta da barbárie deles de cada dia, promovida por Trump e seus sectários. Eles são muito mais perigosos do que o "clown" que comparece a um debate de TV para acusar haitianos de comer os gatinhos dos americanos — o que, de qualquer modo, gerou onda de perseguição a imigrantes legais na cidade de Springfield, em Ohio. A realidade é bem mais bruta do que isso. Leiam:

"Ao longo do verão de 2020, vários deputados republicanos pregaram a violência contra manifestantes do movimento Black Lives Matter. O deputado Matt Gaetz tuitou : 'Agora que vemos claramente a Antifa como um grupo de terroristas, será que podemos caçá-los como fazemos com aqueles do Oriente Médio?' Líderes republicanos acolheram Kyle Rittenhouse, o rapaz de 17 anos que atravessou divisas estaduais com um fuzil e matou dois manifestantes em Kenosha, no Wisconsin. Trump recebeu Rittenhouse em seu quartel-general de Mar-a-Lago, enquanto Marjorie Taylor Greene apresentou um projeto de lei para lhe conceder a Medalha de Ouro do Congresso. Os republicanos também defenderam Mark e Patrícia McCloskey, um casal de St. Louis que abriu fogo contra manifestantes desarmados do Black Lives Matter, escolhendo os McCloskey como oradores especiais na convenção do Partido Republicano em 2020.

A retórica violenta subiu de tom após o pleito de 2020. Autoridades eleitorais do Arizona, da Geórgia, de Michigan, da Pensilvânia, Wisconsin e de outros estados decisivos foram ameaçadas de morte por apoiadores de Trump no rescaldo da eleição. Uma pesquisa de 2022 realizada com autoridades eleitorais revelou que uma em cada seis havia recebido ameaças no trabalho e que 30% sabiam de alguém que tinha deixado o cargo por, ao menos parcialmente, medo. No Wisconsin, alguns sites do Partido Republicano nos condados avisaram aos republicanos que se preparassem para a guerra."

Trata-se de um trecho de "Como Salvar a Democracia", de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt — no caso, só para lembrar, os autores se referem à democracia americana propriamente. Trata-se de detalhes do cotidiano da fascistização em curso nos EUA que nos escapam. De 2020 a esta data, as coisas pioraram muito por lá. O "MAGA" — Make America Great Again — deixou de ser um slogan de campanha para se tornar um movimento de milicianos frequentemente armados.

Jair Bolsonaro, nem se poderia esperar outra coisa, divulgou um vídeo no Brasil manifestando apoio a Trump, em que vê um paladino da liberdade. Para o ex-presidente brasileiro, o homem que recebe um assassino em sua casa para exaltar as suas virtudes é um exemplo a ser seguido.

Posso entender por que os fascistas daqui, no que são secundados por "analistas liberais" que perderam o senso de ridículo e a vergonha, consideram que o Supremo é formado por um grupo de censores. Com efeito, no Brasil, a deputada republicana da Geórgia Marjorie Taylor Greene seria denunciada pela PGR. Da mesma sorte, os responsáveis por um partido que escolhessem dois assassinos para discursar numa convenção partidária cairiam na rede do Ministério Público Federal. E todos se tornariam réus no Supremo.

MAS A DEMOCRACIA NÃO CURA A SI MESMA?
Alguns liberais sinceros -- o que exclui os reacionários em pele de cordeiros -- tendem a dar respostas aborrecidas e já vencidas pela realidade quando se trata de enfrentar os que desafiam abertamente a democracia não porque queiram aprimorá-la, mas porque pretendem destruí-la. Todos gostamos da ideia, que chegou a ser virtuosa por um largo tempo, de que os males da liberdade se corrigem com ainda mais liberdade. Não há como evitar a pergunta a esta altura: livres com que finalidade?

Falando sobre a realidade americana, observam Levitsky e Ziblatt no livro citado:
"Por mais de dois séculos, a competição tem sido vista como uma espécie de elixir mágico. Teóricos e praticantes costumam citar a fórmula do filósofo John Stuart Mill para derrotar ideologias antidemocráticas. Na famosa frase de Mill, é a colisão de opiniões adversas que possibilita o triunfo da verdade sobre a inverdade. Da mesma forma, no Décimo dos 'Artigos Federalistas', James Madison sustentava que, se uma facção consiste em menos do que uma maioria, a ajuda vem do princípio republicano que permite à maioria derrotar suas sinistras opiniões pela votação regular. A democracia, portanto, deveria ser autocorretiva. Eleições competitivas criam um mecanismo de 'feedback' que recompensa os partidos sensíveis aos eleitores e castiga os que carecem dessa sensibilidade. Com isso, os partidos perdedores se veem obrigados a moderar e ampliar seu apelo para voltar a ganhar no futuro."

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Não entrarei em minudências aqui, mas os autores demonstram como o sistema americano leva à super-representação de territórios e grupos, permitindo a vitória dos que não obtiveram a maioria. Para registro: desde 1992, os republicanos venceram no voto popular uma única vez, com George W. Bush, em 2004. Ele próprio perdeu em 2000 no voto popular para Al Gore, mas levou a Casa Branca. Seguiram-se dois mandatos de Barack Obama. Trump também foi derrotado nas urnas para Hillary Clinton em 2016, mas venceu no colégio. E Biden o superou em 2020 nos dois escrutínios. Falhou a máxima de Madison: em vez da moderação, veio a radicalização. Disfunções daquele modelo que, claramente, ameaçam a ordem democrática.

No sábado, o New York Times publicou um editorial afirmando por que não se deve votar em Trump:
"Você já conhece Donald Trump. Ele não é apto para liderar. Observe-o. Ouça aqueles que o conhecem melhor. Ele tentou subverter uma eleição e continua sendo uma ameaça à democracia. Ele ajudou a derrubar Roe contra Wade, com consequências terríveis.
A corrupção e a ilegalidade do Sr. Trump vão além das eleições: é todo o seu ethos. Ele mente sem limites. Se for reeleito, o Partido Republicano não o conterá.
O Sr. Trump usará o governo para perseguir oponentes. Ele buscará uma política cruel de deportações em massa. Ele causará estragos para os pobres, para a classe média e para os empregadores.
Um outro mandato de Trump prejudicará o clima, destruirá alianças e fortalecerá autocratas. Os americanos devem exigir mais. Vote."

A propósito: como lembrou a jornalista e historiadora Anne Applebaum, se Trump diz que perseguirá seus adversários, convém acreditar nele.

UM FASCISTA
O historiador americano Robert Paxton, autor de "A Anatomia do Fascismo", escreveu, em 2017, que era preciso tomar muito cuidado com o adjetivo fascista para designar Trump. Em 2021, cinco dias depois da invasão do Capitólio, ele próprio decidiu remover a sua objeção ao emprego da palavra:
"O incentivo aberto [de Trump] à violência cívica para reverter o resultado de uma eleição extrapola um limite. O rótulo [fascista] parece agora não apenas aceitável, mas necessário".

Seu livro sobre o fascismo, que é de 2004, dá algumas pistas importantes para entender o aluvião de extremismo que colhe hoje as democracias, que, não raro, têm reagido tardiamente às forças da desordem reacionária. Escreve:
"Quando um sistema constitucional se vê refém do impasse, e as instituições democráticas deixam de funcionar, a arena política tende a se estreitar?"

O autor lembra que, nos fascismos europeus, os conservadores se uniram aos extremistas para derrotar as esquerdas na esperança de que poderiam controlá-los depois:
"Mesmo que, para chegar a um acordo, fosse necessário admitir esses arrivistas grosseiros ao primeiro escalão do governo, os conservadores estavam convencidos de que manteriam o controle do Estado"
(...)
Um ingrediente central dos cálculos dos conservadores era que o cabo austríaco [Hitler] e o agitador novato e ex-socialista italiano [Mussolini] não teriam a menor ideia do que fazer com o cargo de primeiro escalão. Seriam incapazes de governar sem o 'savoir-faire' dos cultos e experientes líderes conservadores. Em suma, os fascistas ofereciam uma nova receita de governo, contando com o apoio popular, sem implicar uma divisão do poder com a esquerda e sem representar qualquer ameaça aos privilégios sociais e econômicos e ao domínio político dos conservadores. Os conservadores, de sua parte, tinham em mãos as chaves das portas do poder."

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É evidente que deu tudo errado. Golpes costumam engolir as elites civis que os patrocinam.

Nesta nova tentativa de Trump voltar ao poder, não são poucos os que apontam que, desta vez, ele conhece o caminho para não se "sentir tolhido por Washington". Está cercado apenas de fanáticos.

IMPULSOS DOS RADICAIS
O Trump que promete deportações em massa se for eleito e que já acena com o não reconhecimento da derrota, caso aconteça, não é um ET que veio das esferas. Ele incita a radicalização, mas também é incitado por ela. Paxton tem uma passagem luminosa sobre a relação de um líder fascista com seus liderados. E notem como pode ser útil para entender também o que se deu no Brasil:
"Além dos atos e das palavras do líder, os regimes fascistas abrangem os impulsos radicalizadores vindos da base, o que os diferencia nitidamente das ditaduras autoritárias tradicionais. Já aludi anteriormente à incitação deliberada de expectativas, de dinamismo, excitação, ímpeto e risco que eram inerentes à atração exercida pelo fascismo.

Era perigoso abandonar por completo essas expectativas, pois isso significaria corroer a principal fonte de poder autônomo do líder independente das antigas elites. O partido e os militantes eram, em si, uma poderosa força a favor do prosseguimento da radicalização. (...) Nenhum regime era autenticamente fascista se não contasse com o movimento popular que o auxiliasse a chegar ao poder, monopolizasse a atividade política e, quando já no poder, desempenhasse um papel importante na vida pública com suas organizações paralelas".

Trump e outros líderes afascistados são perigosos não apenas em razão das ideias perversas que têm por sua própria conta, mas também porque expressam o ponto de vista de milhões de pessoas movidas pelo extremismo.

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
Vocês já devem ter notado -- e ainda nesta terça li um artigo dessa estirpe -- que a imprensa, também a brasileira, está coalhada de artigos apontando os erros cometidos pelas esquerdas e pelos progressistas, que teriam permitido a ascensão da extrema direita Brasil e mundo afora.

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Não que esses que escrevem se considerem, eles próprios, reacionários ou caudatários de teses fascistoides — muitos são, mas se querem mais, digamos, higiênicos do que isso...

Não se dão conta, e isto teria a sua graça não se tratasse de coisa tão perigosa, que atribuem exclusivamente aos esquerdistas a tarefa de combater a extrema direita. Se esta cresceu, então é porque aqueles não fizeram um bom trabalho.

É curioso que eles próprios não se perguntem: "Mas o que nós, que nos queremos liberais, podemos fazer contra a fascistização da política?"

E por que não se perguntam? Porque, no fim das contas, se preciso, se juntam "ao cabo austríaco" ou ao "agitador italiano" se preciso... Acusam a omissão dos progressistas para esconder seu colaboracionismo desavergonhado.

Uma terça-feira para entrar na história.

ENCERRO
"Ah, lá está o exclusivista moral apontando o dedo..."

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Não se trata de exclusivismo moral. É questão objetiva: você já combateu um fascista hoje? Ainda não? Então se candidata a pescoço ou a corda.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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