'Embaixador turístico' de Bolsonaro propõe expedição para substituir multas
Resumo da notícia
- Apresentador de TV e biólogo Richard Rasmussen é cobrado em R$ 8,9 milhões por multas ambientais aplicadas pelo Ibama de 2002 a 2009
- Rasmussen foi anunciado "embaixador" do turismo no Brasil por Bolsonaro em agosto do ano passado; um mês depois, ele apresentou sua proposta ao Ibama
- Ex-presidente do ICMBio considerou o projeto de Rasmussen "viável/vantajoso"; advogado diz que acordo está sendo "afinado" e passará pelo MPF
O apresentador de TV e biólogo Richard Rasmussen - anunciado no ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro como "embaixador do turismo no Brasil" -, pretende fechar um acordo com órgãos ambientais do governo e o Ministério Público Federal pelo qual substituirá o pagamento em dinheiro das multas ambientais por uma série de expedições em UCs (Unidades de Conservação) administradas pelo governo. Atualizado, o valor cobrado pelas multas atinge cerca de R$ 8,9 milhões.
Pela proposta, Rasmussen fará uma "reparação 'in natura'" na forma de uma série de viagens que, segundo ele, vão durar cinco anos e passar por 46 UCs. A expedição, diz o projeto, será financiada por patrocinadores privados.
As primeiras viagens já começaram pelo Pantanal e foram divulgadas pelo apresentador na internet. No último dia 10, ele foi o convidado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para uma entrevista sobre os incêndios na região.
Ex-presidente do ICMBio viu "viabilidade/vantajosidade técnica"
Os 46 programas de TV de uma hora de duração cada um produzidos por Rasmussen serão exibidos, segundo ele, pela TV Cultura e nas redes sociais do apresentador. A proposta também prevê "250 palestras de educação ambiental" e estímulo à castração de "10 mil cães e gatos", pois os animais domésticos seriam "uma ameaça real à nossa biodiversidade". Diz ainda que fará uma "reintrodução de polinizadores de ocorrência natural das áreas florestais recuperadas (doação de mudas endêmicas)".
Na planilha de custos do projeto entregue ao Ibama, a diária do apresentador é fixada em R$ 5 mil - a proposta diz que todos os valores virão de empresas privadas. A de dois operadores de câmera, em R$ 500 cada um. Na prática, o acordo evitará que Rasmussen queime seu patrimônio para "quitar" a indenização e ao mesmo tempo permitirá que ele receba as diárias, além da liberação do acesso às UCs. A proposta diz que o projeto custará ao todo R$ 14,5 milhões, enquanto o valor das multas é de R$ 8,9 milhões.
O ajuste tem que passar pelo Ministério Público Federal e pela Justiça Federal de São Paulo, mas já tem o sinal verde do ICMBio. Dois meses antes de deixar o cargo, em agosto, o presidente do órgão, Homero de Giorge Cerqueira, escreveu em ofício que, "após análise do teor da proposta, opinamos pela concordância, alusiva à viabilidade/vantajosidade técnica da proposta supracitada, especialmente no que concerne ao âmbito das ações e atividades voltadas ao Uso Público".
O advogado de Rasmussen, Vanderson Matos Santana, disse que "o ICMBio expediu as autorizações para o Richard fazer as gravações, os programas, os trabalhos nas unidades de conservação. É tudo supervisionado pelos próprios órgãos, eles têm os servidores do Ibama que vão acompanhar, o próprio ICMBio".
MPF havia pedido a penhora de dois imóveis do apresentador
Rasmussen foi anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro como seu "embaixador do turismo no Brasil" em 2 de agosto de 2019. É um título simbólico, sem salário. No mesmo dia a imprensa lembrou que o apresentado fora autuado oito vezes pelo Ibama de 2002 a 2009 por irregularidades diversas em um criadouro de sua responsabilidade, denominado Toca da Tartaruga, em São Paulo. Em 2005, o criadouro chegou a ser fechado pelo Ibama.
Em uma apelação cível na Justiça Federal, o Ministério Púbico Federal disse que o Ibama encontrou diversas irregularidades ao longo dos anos no criadouro, incluindo "danos causados à fauna: elevado número de morte de animais devido às más condições do criadouro; maus tratos, diante das condições de insalubridade, fugas, mortes por predadores, falta de cuidados veterinários e devida alimentação"; "ausência de documentos de destino dos animais desaparecidos; na recepção de animais apanhados na natureza, por não haver documento comprobatório de origem lícita; nos danos causados aos ecossistemas nacionais pela introdução de espécimes exóticas", entre outros pontos.
O valor inicial das multas era de R$ 403 mil. Em 2007, Rasmussen foi condenado pela Justiça Federal de São Paulo ao pagamento de indenização civil por dano ao meio ambiente dentro de uma ação civil pública ajuizada pelo MPF. Documento obtido pelo UOL mostra que a dívida já havia atingido, em julho de 2017, o valor de R$ 8,9 milhões.
A cifra é mencionada em ofício enviado pelo procurador federal da unidade da AGU (Advocacia Geral da União) em São Paulo, Rodrigo Gazebayoukian, ao ICMBio em Brasília. Ele explicou que a ação civil pública movida pelo MPF transitou em julgado e, assim, o MPF promoveu a execução de Rasmussen.
"A execução foi direcionada contra três bens do executado [Rasmussen]", explicou o membro da AGU, o bloqueio e a penhora de um saldo de R$ 10 mil em contas bancárias, a "penhora de um imóvel localizado em São Paulo e a penhora de um imóvel localizado em Barueri".
Presidente do Ibama disse que multa 'não deve ser um fim em si mesmo'
Em 2 de agosto de 2019, Bolsonaro anunciou Rasmussen como seu "embaixador" turístico. Um mês depois, em 3 de setembro, Rasmussen protocolou no Ibama de Brasília uma "proposta de conversão de multas ambientais de execução direta" que também apresentava, como projeto, a expedição de "cinco anos" pelas unidades de conservação.
Na apresentação da proposta, Rasmussen e seu advogado argumentaram que as multas dos anos 2000 tiveram uma suposta razão ideológica. "Não é uma novidade informar que o Brasil passou, e está passando, por uma onda ideológica que afetou demasiadamente o funcionamento do Poder Público em inúmeras esferas, órgãos e autarquias. Diante da postura desumana de intolerância que se instalou, a imagem do Proponente [Rasmussen] nos veículos de comunicação, manejando com grande proficiência animais e educando a sociedade, afrontaria os totalitários, logo, não tardou muito para que fosse perseguido com o nítido propósito de destruir sua ilibada reputação de uma vida dedicada a educação e conservação."
Poucos dias depois, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, concordou que a proposta poderia ser avaliada pela área técnica.
Bim escreveu que "o acordo substitutivo visa dar fim ao processo sancionador" e pode se revelar "como a solução jurídica que mais atende aos ditames da proporcionalidade, equanimidade, eficiência e compatibilidade com os interesses gerais".
O presidente do Ibama disse ainda que "a aplicação da multa não deve ser um fim em si mesmo" e que "no âmbito do poder de polícia, a sanção não deve ser a prioridade". "Entende-se plausível, em um primeiro momento, a proposta de um acordo substitutivo à execução da penalidade pecuniária, consistente em uma obrigação de fazer, assumida pelo autuado e fiscalizada pelo Ibama. Isso imprimiria eficiência e celeridade aos procedimentos administrativos para cumprimento de tais penalidades ambientais."
Bim pediu a opinião das áreas técnicas do Ibama. A coordenação de gestão de informação ambiental do Ibama concordou que "a proposta apresentada para construção do projeto 'Biomas do Brasil', após as devidas adequações, detalhamento e avaliação jurídica, está em consonância com os objetivos e diretrizes da Educação Ambiental em desenvolvimento no Ibama".
Apesar do bom acolhimento dessa proposta, o Ibama disse à coluna, na última sexta-feira (23), que o acordo "foi negado pelo Instituto, pois não atendia a uma série de definições ambientais".
A coluna apurou que a conversão só pode ser requerida antes do fim do processo administrativo gerado pelas multas. No caso de Rasmussen, os processos já haviam transitado em julgado administrativo.
Na Justiça Federal de São Paulo, onde a ação civil pública já estava em fase de execução, Rasmussen protocolou em fevereiro passado uma "proposta de reparação 'in natura'", caminho diferente da "proposta de conversão direta" que, segundo o Ibama, foi rejeitada. Em 6 de maio, o juiz da 12ª Vara Cível Federal ordenou que o MPF, o Ibama e o ICMBio fossem intimados a opinar sobre a proposta, "em prestígio aos princípios do contraditório e da ampla defesa".
'Estamos em fase de afinar o projeto', diz a defesa de Rasmussen
O advogado de Rasmussen disse que a ação na Justiça Federal "comporta o acordo que a gente está fazendo" e que "estamos em fase de afinar o projeto". "Cada um pôs na mesa suas exigências. Ainda não assinamos nada, tudo o que a gente está fazendo é via Judiciário, não existe nada de ilegalidade, nada de clandestinidade. O MPF é talvez a entidade mais séria que tem nesse país, inclusive com [acompanhamento da] Justiça Federal."
Indagado se o Ibama deu o aval para o acordo, o advogado disse que sim. "O Ibama já deu [o aval], o ICMBio expediu as autorizações para o Richard fazer as gravações, os programas, os trabalhos nas unidades de conservação. É tudo supervisionado pelos próprios órgãos, eles têm os servidores do Ibama que vão acompanhar, o próprio ICMBio."
O advogado afirmou ainda que, "por ser um projeto ambiental, ele não é tão simples assim de implementar". "A gente está em fase de negociação, o Ministério Público faz exigência, o Ibama faz outra, né, até fechar os trâmites do processo. É um processo bem complexo nessa parte de compensação ambiental."
O advogado foi indagado sobre os precedentes de acordos do gênero ou se ele é novo ou inédito. "Não é novo nem inédito. Na verdade é uma situação... Uma vez ocorrendo eventual infração ambiental e essa infração ambiental é passível de recuperação... O órgão ambiental, o Ministério Público, a Justiça devem sempre privilegiar a recomposição 'in natura'. Não é interesse do Estado receber dinheiro para colocar no caixa circulante. O interessante mesmo é que esteja utilizando esses valores para recomposição 'in natura' em prol do meio ambiente e é isso que a gente tem feito."
"Vão ser promovidas várias ações de conservação naquelas unidades de conservação principalmente ao redor das unidades para ser muito bem protegidas. Vão ter castração, palestra. É um projeto muito social", afirmou o advogado.
Na entrevista ao deputado Eduardo Bolsonaro em 10 de outubro, Rasmussen falou sobre ter sido escolhido "embaixador do ecoturismo" junto à Embratur.
"Não dependo hoje meu trabalho de dinheiro do governo. Tanto que meu cargo [de embaixador] de ecoturismo, eu não ganho um centavo para isso. Eu só defendo um posicionamento que acho que o Brasil tem que ser o destino do mundo turístico. [...] Eu não recebo dinheiro de governo, você vê que [pelo] meu cargo de ecoturismo não recebo nada."
Ibama diz que acordo depende de anuência do Ministério Público
A coluna indagou ao Ibama qual precedente levou em conta para a análise da proposta de Rasmussen. Em nota, o órgão afirmou que "não baseia suas decisões sobre conversão em precedentes, mas nas regras vigentes (Instruções Normativas Conjuntas 1, 2 e 3, editadas neste ano). Se o interessado atende aos requisitos, os pedidos de conversão serão deferidos. Já em relação às obrigações decorrentes de uma decisão tomada no âmbito de uma ação civil pública, esta depende de homologação em juízo e anuência do Ministério Público."
O órgão não citou a qual decisão judicial a que fez referência.
Procurado, o Ministério Público Federal em São Paulo não prestou informações sobre o assunto, sob o argumento de que o processo da execução tramita sob sigilo. Indagado se concorda ou já concordou com os termos do acordo proposto por Rasmussen, o órgão disse que não pode fornecer "nenhuma informação sobre o caso".
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