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Rubens Valente

Cadastro de 280 imóveis incide em terras indígenas no MA, aponta Greenpeace

Desmatamento dentro de Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Pará - Victor Moriyama/Greenpeace
Desmatamento dentro de Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Pará Imagem: Victor Moriyama/Greenpeace

Colunista do UOL

22/12/2020 04h01

Resumo da notícia

  • Levantamento mostra que 62,3 mil hectares dentro de 7 terras indígenas são registrados no cadastro do governo federal como se fossem de particulares
  • O registro de imóveis dentro de terras indígenas tem sido incentivado no governo Bolsonaro por meio de instrução normativa da Funai; MPF contesta
  • Para liderança indígena do Maranhão, cadastro de imóvel é "grande contradição" e representa mais pressão sobre a posse das terras indígenas no país

Um levantamento divulgado pela organização não governamental Greenpeace nesta terça-feira (22) mostra que 280 registros no CAR (Cadastro Ambiental Rural), em um total de 62,3 mil hectares, incidem sobre sete terras indígenas do Maranhão com altos índices de desmatamento. O número revela a pressão que invasores e vizinhos exercem sobre as terras indígenas homologadas pelo governo.

Segundo o Greenpeace, a prática dos registros no CAR "é uma tentativa de consolidar a grilagem das terras indígenas e gera conflitos de posse".

Criado em 2012 como parte do Sinima (Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente), o CAR é um registro eletrônico nacional dos imóveis rurais. O governo Bolsonaro estimula, até por meio de uma instrução normativa da Funai (Fundação Nacional do Índio) de 2020, os registros no CAR sobre terras indígenas tanto homologadas quanto as que ainda não foram demarcadas.

O Ministério Público Federal tem atuado nos Estados contra a instrução da Funai e obtido decisões judiciais para suspender a prática do registro do CAR em terras indígenas, mas a norma do órgão indigenista continua em vigor, com alcance nacional.

Permissão de registro é "grande contradição" e pressiona território, diz líder indígena

Para Edilena Krikati, coordenadora da Coapima (Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão), o levantamento do Greenpeace expõe "uma grande contradição". Se aos indígenas cabem a posse exclusiva e o usufruto exclusivo das terras, conforme previsto na Constituição, indaga Edilena, como o governo federal permite que terceiros consigam registrar supostos imóveis particulares sobre essas mesmas terras?

"Como pode ter uma propriedade particular dentro de uma área federal? Como pode registrar um CAR dentro de uma terra indígena? A gente começa a perceber que a nossa realidade não condiz com o que a lei fala, com o Direito. É preciso que essa situação seja resolvida", disse Edilena.

Sobre a Terra Indígena Krikati, no Maranhão, homologada pela Presidência nos anos 2000 e habitada por mais de 1,3 mil indígenas, incidem 109 cadastros no CAR, com um total de 8,4 mil hectares. Segundo Edilena, um levantamento da Funai apontou mais de 218 famílias de não indígenas vivendo dentro da TI e que não foram retiradas pelo governo, apesar da homologação presidencial e de decisões judiciais favoráveis aos indígenas. Parte dos invasores foi retirada em anos anteriores, mas está voltando para dentro da TI.

Sobrevôo realizado pelo Greenpeace mostra invasão à Terra Indígena Krikati, no Maranhão - Victor Moriyama/Greenpeace - Victor Moriyama/Greenpeace
Sobrevôo realizado pelo Greenpeace mostra invasão à Terra Indígena Krikati, no Maranhão
Imagem: Victor Moriyama/Greenpeace

Segundo Edilena, além da permissão do registro no CAR os discursos do presidente Jair Bolsonaro têm provocado a expectativa, na região, de mudança na demarcação da terra, o que leva ao aumento da pressão sobre o território.

"O discurso dele [Bolsonaro] fez com que muitos ocupantes que já tinham recebido indenização, que já tinham saído da terra indígena, retornassem. Quanto mais tempo passa, quanto mais prolonga, pior fica. Os outros de má-fé estão construindo casas, currais, aumentando o cercado, aumentando o pasto. Não há mais órgãos de fiscalização para saber o que esta acontecendo dentro da TI."

Segundo Edilena, as invasões impedem que os krikatis tenham o usufruto exclusivo sobre suas terras. "A gente conclui que o que a Constituição diz sobre o uso pleno da terra é uma grande mentira. Tem locais que a gente não pode mais pescar, caçar, não pode atravessar. A gente está confinada num espaço."

Invasores criam cabeças de gado dentro da Terra Indígena Awá, no Maranhão - Victor Moriyama/Greenpeace - Victor Moriyama/Greenpeace
Invasores criam cabeças de gado dentro da Terra Indígena Awá, no Maranhão
Imagem: Victor Moriyama/Greenpeace

De acordo com o levantamento do Greenpeace, há registros de CAR sobrepostos sobre as terras indígenas Alto Turiaçu (44 cadastros, com 18,5 mil hectares sobrepostos), Arariboia (40; 1,8 mil), Awá (24; 17 mil), Caru (37; 14,8 mil), Governador (26; 878), Krikati (109; 8,49 mil) e Rio Pindaré (2; 742). Uma oitava terra indígena na mesma região, porém no Estado do Pará, a Alto Rio Guamá, registra 40 cadastros e 4,7 mil hectares.

CAR deveria ter uma trava para impedir registro sobre terras indígenas, diz o Greenpeace

A gestora ambiental Carol Marçal, ativista de campanhas do Greenpeace para a Amazônia, formada na USP (Universidade de São Paulo) e com mestrado no INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), disse que a base de dados do CAR disponível à consulta pública não divulga os nomes ou empresas das pessoas que fizeram os registros, uma informação que, segundo ela, é essencial para melhor compreender a pressão das terras indígenas e que deveria ser divulgada pelo governo.

Para Carol, o levantamento do Greenpeace desnuda "o interesse de pessoas externas às terras indígenas de legalizar, de ter a posse, sobre aquele território que é indígena". "É um termômetro, acaba mostrando a intenção das pessoas. Como se tivessem a expectativa de legalização daquela 'posse' que é ilegal. A instrução normativa da Funai abre uma brecha muito grande também sobre as terras que ainda não estão homologadas. Há um risco maior nesse sentido nas terras que ainda não tiveram seu processo de demarcação finalizado."

"O CAR deveria ter uma trava automática no sistema para não permitir cadastrar um imóvel sobreposto a um território indígena. Sobre o desmatamento, é preciso um fortalecimento do Ibama e da Funai, que estão sendo desmontados, com orçamento menor e com menos funcionários a cada ano. O que deve ocorrer é a manutenção das políticas socioambientais que ainda existem e a proposição de políticas que não violam os territórios", disse Carol.

O Greenpeace aponta ainda que as sete terras indígenas do Maranhão selecionadas para a pesquisa têm um histórico de pressão e registram grupos isolados sob risco de extinção, como os awás. De acordo com o Greenpeace, a Terra Indígena Awá "ocupa a 4ª posição entre os territórios indígenas mais desmatados na Amazônia Legal, segundo o acumulado desde 2008 a 2020, de acordo com o Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe)".

Para as lideranças indígenas dessas terras, a saída tem sido organizar grupos de fiscalização dos territórios, os chamados Guardiões da Floresta, que já atuam nas sete terras indígenas da região, com diferentes graus de organização, na repressão contra crimes ambientais diversos, como desmatamento, garimpo, caça clandestina e roubo de madeira.

De acordo com Carol Marçal, as aldeias também têm criado grupos de "Guerreiras da Floresta", formados por mulheres indígenas que trabalham na conscientização da população do entorno das terras indígenas, por meio de palestras e reuniões.

Procurada na tarde desta segunda-feira (21) para falar sobre o CAR e a situação das terras indígenas no Maranhão, a Funai não havia se manifestado até o fechamento deste texto. Caso o órgão se pronuncie, este texto será atualizado.