'Assediômetro' sobre o governo Bolsonaro tem mais de 600 registros
Resumo da notícia
- Levantamento feito por associações de servidores lista ataques feitos por Bolsonaro e cerceamentos produzidos por normas e práticas administrativas
- Associações dizem que "assédio institucional" se espalha na União; a prática leva à paralisação de políticas públicas, apontam sindicalistas
Da exoneração do presidente do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) ordenada pelo presidente Jair Bolsonaro à suspensão por dez dias de um empregado da estatal Serpro que escreveu "desgoverno" num e-mail interno. Da nomeação de militares sem experiência em saúde para o comando do Ministério da Saúde no meio da pandemia à produção de um dossiê, pelo Ministério da Justiça, contra agentes de segurança pública do movimento antifascismo e professores universitários.
Criada por sindicatos de funcionários públicos federais em meados de 2020, a página na internet que cataloga e divulga casos de "assédio institucional" durante o governo Bolsonaro passou dos 600 registros neste final de ano. O levantamento é feito pela coalizão Arca (Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), que reúne entidades representativas de cerca de 100 mil servidores da União, e pela associação dos servidores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
De acordo com o levantamento, os órgãos mais assediados desde janeiro de 2019 foram o INSS (13 registros), o Ibama (12), o Inpe (12), o Supremo Tribunal Federal (9), o Ministério da Educação e seus braços como o Enem (8), o Ministério da Saúde e/ou o Sistema Único de Saúde (7), a Polícia Federal (7), o ICMBio (6), o IBGE, (6), a Fundação Nacional do Índio (5) e o BNDES (5), seguidos pela Receita Federal (4), Incra (4) e Agência Nacional do Cinema (4).
"Assédio institucional" é uma expressão que vem sendo usada por especialistas em administração pública como o doutor em economia pela Unicamp José Celso Cardoso Jr., presidente da associação dos servidores do Ipea e membro da Arca, um dos idealizadores do "Assediômetro". Segundo ele, esse tipo de assédio ocorre "entre organizações dentro do Estado de níveis hierárquicos diferentes" e se caracteriza por um "conjunto de discursos, falas e posicionamentos políticos, bem como imposições normativas e práticas administrativas" vindas de gestores públicos.
Assim, há também os "órgãos assediadores", que são "utilizados para a prática do assédio institucional". De acordo com o levantamento dos servidores, o campeão do ranking é o Ministério da Defesa, com 19 registros, seguido pela Funai (10), Ministério da Saúde (9), BNDES (7), INSS (5), a Fundação Palmares (4), Conselho Nacional do Meio Ambiente (4), Ministério das Relações Exteriores, entre outros.
A página do "Assediômetro" listava, até este domingo (27), 607 casos, declarações ou comportamentos que provocaram "consequências deletérias ao bom funcionamento de organizações estatais e ao desempenho profissional adequado de seus servidores". O site recebe denúncias pelo e-mail assediometro@arcadesenvolvimento.org ou de forma anônima, por meio de um formulário.
"O 'Assediômetro' foi criado para demonstrar a amplitude de um conjunto de discursos, falas e posicionamentos públicos, bem como imposições normativas e práticas administrativas, realizado ou emanado (direta ou indiretamente) por dirigentes e gestores públicos localizados em posições hierárquicas superiores, e que implica em recorrentes ameaças, cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e deslegitimações acerca de determinadas organizações públicas e suas missões institucionais e funções precípuas", diz o site na internet.
Assédio paralisa políticas públicas, diz presidente de associação de servidores
Para Pedro Pontual, presidente da Anesp (Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental), com cerca de 830 filiados, a prática do assédio institucional "inequivocamente está se agravando". Entre outros casos, ele cita uma mensagem da CGU que advertiu, em junho passado, os servidores do órgão a não tornarem pública, em redes sociais, eventual discordância sobre "posicionamentos" do órgão. O aviso foi impresso e afixado em elevadores de prédios públicos
"Um processo como esse nunca houve. No impeachment da Dilma tinha servidor público na internet pedindo o impeachment, xingando. O governo atual não aceita críticas e isso está muito relacionado à baixa qualidade da gestão. 'Um manda e outro obedece', como diz o general Pazuello, talvez funcione na administração militar, mas na civil não funciona, o que enriquece é discordar. O chefe ouve ou não ouve, mas teve espaço para o servidor apresentar o seu ponto de vista. Agora só se recruta pessoas que concordem com o governo. Eles estão afastando [dos cargos de confiança] as pessoas que têm qualquer tipo de divergência e que poderiam estar melhorando a qualidade do serviço público", disse Pontual.
A principal consequência da prática do "assédio institucional", segundo o presidente da Anesp, é que diversas políticas públicas, principalmente as de natureza social, começaram a enfrentar problemas na execução.
"A essência do gestor no governo federal é a cobrança. Um gestor verdadeiro vai e fala, 'olha, meu orçamento está baixo'. É uma briga que você compra, é o cara que vai lá e briga para ter suas coisas em andamento. A gente vê que esse perfil de chefe não é mais desejado agora. Está sendo criado um tipo de concentração das decisões que você realmente vai deixando um monte de coisas de fora. Quem está no poder centralizado não consegue ver as políticas públicas na ponta. Isso faz com que se asfixie várias dessas políticas. O impacto disso tudo é que o governo para de fazer. Parte da política social vai ficando fragilizada", disse Pontual
Sindicalista aponta que assédio institucional "é fenômeno novo e perturbador"
Kleber Cabral, auditor fiscal da Receita Federal e presidente do Sindifisco Nacional (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), disse que o assédio institucional tem se dado também "por meio de alterações no Congresso, como no caso do fim do voto de qualidade no CARF [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais], o sufocamento orçamentário e a falta de concurso público".
"O Orçamento de 2020 foi 35% menor que o de 2019, e o de 2021 poderá ser ainda menor. O último concurso público foi em 2014. Hoje são 8 mil auditores fiscais da Receita Federal. Há dez anos eram 12 mil. A questão do CARF é gravíssima, fizemos denúncia à OCDE e ao GAFI, isso foi citado inclusive no relatório da Transparência Internacional", disse Cabral.
O presidente do Sindifisco Nacional disse que, ao menos em relação à Receita, o ano de 2020 foi "menos problemático que 2019". "Pelo menos não vimos mais situações de tentativa de interferência em nomeações aqui e ali, como ocorreu em 2019 no caso do Porto de Itaguaí", disse Cabral.
No site do "Assediômetro" na internet, o presidente da Afipea, José Celso Cardoso Jr., disse que a ideia do levantamento é chamar a atenção para o "fenômeno novo e perturbador no interior do setor público brasileiro". Aponta que o governo Bolsonaro "caminha rapidamente para uma estratégia de acirramento de contradições relativamente aos segmentos da sociedade não alinhados a seu projeto de poder".
"Oxalá a comunidade internacional democrática e a sociedade brasileira consciente do perigo autoritário/totalitário em curso possam rapidamente perceber a abrangência, a profundidade e a velocidade dessa agenda retrógrada para então se reorganizarem coletivamente e se reposicionarem politicamente com vistas à recuperação das tendências de construção da República, da Democracia e do Desenvolvimento no espaço nacional."
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