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Rubens Valente

Aumento de leitos em Manaus foi mal planejado, diz especialista

Parentes de pacientes internados nos hospitais fazem fila para recarregar cilindros de oxigênio na frente de empresa em Manaus - SANDRO PEREIRA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Parentes de pacientes internados nos hospitais fazem fila para recarregar cilindros de oxigênio na frente de empresa em Manaus Imagem: SANDRO PEREIRA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

17/01/2021 13h24Atualizada em 17/01/2021 21h51

Resumo da notícia

  • Pesquisador e epidemiologista da Fiocruz disse que crescimento do número de leitos não foi acompanhado pelo aumento de insumos hospitalares e pessoal
  • Para associação de servidores de políticas públicas, caos no Amazonas foi "escolha por não gerir" do Ministério da Saúde em seu papel coordenador
  • Governo do Amazonas disse que só foi avisado pela empresa fornecedora sobre a falta de oxigênio uma semana antes do caos registrado na quinta-feira

A crise no fornecimento de insumos nos hospitais de Manaus (AM), que nesta quinta-feira (14) culminou com a morte de pacientes por escassez de oxigênio, está relacionada à ampliação sem o correto planejamento do número de leitos exclusivos para Covid-19 no Estado. A avaliação é do pesquisador e epidemiologista da Fiocruz no Amazonas Jesem Orellana, que desde setembro aponta a necessidade de medidas rigorosas de distanciamento social para reduzir a sobrecarga nos hospitais em uma segunda onda da pandemia do novo coronavírus no Estado.

No final de dezembro, o governo do Amazonas anunciou que o número total de leitos exclusivos para Covid-19 no Estado aumentou de 457, no final de outubro, para 806 no final de 2020. Desse total, 206 são de UTIs (Unidades de Terapia Intensiva), todos em Manaus - não há UTI no interior do Amazonas.

Orellana disse que na primeira onda, no ano passado, houve um aumento importante de pessoas mortas fora do sistema hospitalar em Manaus, o que mostrou a falta de acesso da população aos leitos, intubação e oxigênio. No ano passado, segundo indica um levantamento da Arpen Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), houve um aumento de 38% no número de mortes fora do sistema hospitalar. Sem atendimento hospitalar, as pessoas morriam em casas, ruas e outros locais.

Em seu livro "Os desaparecidos da Covid-19" (editoras UFAM e Alexa Cultural), concluído em setembro em parceria com os especialistas Renan Albuquerque, Jeremias Leão e Wilhelm Alexandre Steinmetz, Orellana citou "os recolhimentos de cadáveres em residências e os casos de registro de óbitos em excesso" ao longo de 2020, o que sugeria o registro de "cerca de 1.500 falecimentos sem a devida investigação profunda até o presente, a qual deveria ocorrer, fosse o motivo o novo coronavírus ou a deficiência no atendimento".

Os autores também ressaltaram que "o combate à pandemia da covid-19 no Brasil infelizmente sofre de uma postura abertamente anticientífica e negacionista do governo federal".

Na segunda fase da pandemia, segundo Orellana, o governo providenciou o aumento no número de leitos, mas não houve um crescimento correspondente da estrutura e dos insumos na rede de atendimento hospitalar para atender a demanda.

"Nessa segunda onda temos o dobro, praticamente, de leitos hospitalares disponíveis, só que não se planejou o consumo de oxigênio. Você saiu abrindo no improviso leitos sem condição, sem fazer a previsão adequada e aí você chega, fatalmente, nessa monstruosidade aí que é o fim do oxigênio para as pessoas."

Orellana foi indagado pelo UOL se a falta de oxigênio foi um erro de planejamento. "Quando você erra na quantidade de pacientes que vão demandar internação hospitalar, na quantidade de pacientes com síndrome respiratória aguda grave, você erra em tudo, erra na quantidade de anestésico que vai precisar para intubar pacientes, na quantidade de medicações de alívio para fazer o manejo clínico desses pacientes e também erra na quantidade de oxigênio medicinal necessária. Na verdade temos falado muito sobre o oxigênio porque ele é o que mais aparece. Mas não é só o oxigênio que está faltando. Então respondendo à sua pergunta, com certeza foi um erro de planejamento, mas um erro de planejamento que esconde muitos outros."

Segundo Orellana, a oferta de leitos clínicos e de UTI vem aumentando progressivamente desde setembro em Manaus, sem parar. "Então essa tese de que você não sabia, de que tudo aconteceu ao acaso, ou inexplicavelmente, não faz o menor sentido. Você não pode abrir novos leitos clínicos e novos leitos de UTI não esperando aumentar o consumo de insumos médicos e de recursos humanos."

Associação de servidores de políticas públicas diz que tragédia foi "escolha por não gerir"

Em nota pública neste sábado, a Anesp (Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental), que reúne mais de 830 servidores da União, afirmou que a tragédia de Manaus é a "escolha por não gerir". A entidade disse que as mortes e o desespero dos familiares "não foram causados pela falta de recursos orçamentários e financeiros".

"Houvesse um bom mecanismo de gestão já consolidado após 10 meses de pandemia, com mais de 207 mil mortes confirmadas e 8,3 milhões de casos, um monitoramento de indicadores locais das cidades e regiões mais vulneráveis - como Manaus demonstrou ser em março e abril de 2020 - e um acompanhamento responsável dos estoques de suprimentos, teria sido possível mitigar a tragédia de Manaus desse janeiro de 2021.

Segundo a Anesp, o Ministério da Saúde é a cabeça do SUS (Sistema Único da Saúde) e, por isso, tem à sua disposição "uma estrutura de coordenação de políticas públicas de saúde, baseada não somente em infraestrutura, mas também em regras postas de fluxos e procedimentos".

"Uma vez declarada a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da covid-19 pela Portaria do Ministério da Saúde nº 188, de 3 de fevereiro de 2020, ao Ministro foram adicionalmente conferidos, dentre outros, os poderes de requisição de 'bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização', bem como a de contratar 'profissionais de saúde por tempo determinado e em razão de excepcional interesse público'", diz a nota.

Governo do Amazonas disse que houve "alta considerável" de pacientes em janeiro

O governo do Amazonas disse que o problema da escassez do oxigênio ocorreu por uma conjunção de dois fatores: os "elevados números de internações de pacientes com Covid-19 no mês de dezembro de 2020, com alta considerável nos primeiros dias de janeiro de 2021" e a chegada, somente no dia 7 de janeiro, da informação da empresa responsável pelo fornecimento de oxigênio para as unidades da rede estadual de Saúde. a White Martins, de que não conseguiria suprir a demanda. Esses pontos integram uma nota oficial divulgada durante a semana pelo governo.

"O consumo diário de oxigênio, que no primeiro pico da pandemia saiu de 14 mil metros cúbicos para 30 mil em um período de 30 dias, nesta segunda fase cresceu exponencialmente em um curto espaço de tempo. O consumo, que estava na ordem de 30 mil metros cúbicos no dia 31 de janeiro de 2020, saltou para perto de 60 mil no dia 8 de janeiro e chegou a 76,5 mil metros cúbicos atualmente, com indicação de demanda crescente. A produção local da White Martins, segundo dados apresentados pela empresa ao Comitê de Resposta Rápida - Enfrentamento Covid-19, composto pelos governos estaduais, municipais e federais, é de cerca de 28,2 mil metros cúbicos", afirmou o governo, em nota.

O governo estadual diz ainda que no mesmo dia 7, quando foi informado pela empresa sobre o problema, "iniciou uma força-tarefa para solucionar o problema, contando com o apoio das Forças Armadas no transporte de oxigênio de plantas da própria White Martins em outros estados para Manaus e também requisitando toda a produção de outras duas empresas que produzem na capital, mas que são de menor porte comparado à principal fornecedora. O Governo também iniciou a prospecção para contratação de mini usinas para os hospitais de Manaus, medida que foi assumida pelo Ministério da Saúde, que está providenciando essa solução".

Ministério diz que nova cepa do vírus é "fator preponderante"

Em nota à coluna neste domingo (17), o Ministério da Saúde afirmou que "a nova cepa do coronavírus, encontrada no Amazonas possui um grau de transmissibilidade muito maior e mais agressivo. Esse, sem dúvida, pode ser considerado fator preponderante para o aumento do número de óbitos".

Sobre a nota da Anesp, o ministério afirmou que "a atuação do Comitê de Enfrentamento à Covid-19, coordenado pelo Ministério da Saúde, com apoio do Governo do Amazonas e Prefeitura de Manaus, tem sido fundamental para viabilizar estratégias de recebimento, transporte e distribuição de carregamentos de oxigênio visando atender à demanda de hospitais e serviços de pronto atendimento do Estado".

"Além de viabilizar a distribuição do oxigênio às unidades, o Ministério da Saúde vem realizando a transferência de pacientes de Covid-19, em condição estável, do Amazonas para hospitais de outros estados brasileiros que se disponibilizaram a ajudar. O objetivo é possibilitar a redução na demanda e garantir oxigênio e ocupação de leitos de UTI apenas para os pacientes graves."

Na quinta-feira (14), em uma live ao lado do presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atribuiu o caos em Manaus ao clima na região, dificuldades de abastecimento pela posição geográfica de Manaus e a suposta ausência de recomendação, pelo sistema de saúde em Manaus, de um suposto "tratamento precoce" para a Covid-19. De acordo com especialistas, associações médicas e várias agências de saúde no mundo todo, não existe "tratamento precoce" para a Covid-19.

O ministro disse ainda que a soma dos fatores levou a "uma grande procura por estrutura e por tratamento especializado. Nesse modelo, têm duas grandes faltas: recursos humanos e oxigênio". Ele admitiu "o colapso na região e disse que "a fila para leito cresce bastante, hoje [quinta-feira] estamos com 480 pessoas na fila, e há diminuição da oferta do oxigênio".