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Rubens Valente

REPORTAGEM

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FAB se recusa a divulgar contrato de satélite pelo qual pagará R$ 183 mi

Técnicos da empresa Iceye, da Finlândia, testam um satélite-radar numa câmara anecoica - Iceye/Divulgação
Técnicos da empresa Iceye, da Finlândia, testam um satélite-radar numa câmara anecoica Imagem: Iceye/Divulgação

Colunista do UOL

05/02/2021 04h01

O Comando da Aeronáutica se recusou a fornecer ao UOL, em resposta a um pedido feito pela Lei de Acesso à Informação, acesso aos documentos que justificam o contrato fechado no penúltimo dia do ano passado e pelo qual pagará US$ 33,8 milhões (ou cerca de R$ 183 milhões ao câmbio desta quinta-feira) a fim adquirir um satélite de uma empresa da Finlândia.

Segundo a Aeronáutica, as informações "são consideradas estratégicas". Tudo foi classificado com o grau de reservado. Com isso, os dados só poderão ser acessados pelo contribuinte a partir de dezembro de 2025. O próprio contrato também é considerado "reservado".

Na recusa ao pedido feito pela LAI, a Aeronáutica não citou em qual artigo da lei de acesso (nº 12.527/2011) ou do decreto que a regulamenta (nº 7.724/2012) se baseou para fundamentar o sigilo.

A coluna pediu acesso a todo o material relativo à publicação do extrato do contrato, um parágrafo que saiu em dezembro no Diário Oficial da União. No dia 30 daquele mês, o contrato foi assinado pelo comandante da Aeronáutica, o brigadeiro do ar Carlos Moretti Bermudez, e a empresa Iceye. Não houve licitação.

Fundada em 2014, a Iceye trabalha com satélites do tipo SAR (do inglês, Radar de Abertura Sintética). Chamado de satélite-radar, é usado para observação da Terra. Ele emite pulsos que, em tese, permitem captar imagens mesmo em dias nublados. Sua capacidade de detecção de desmatamentos na Floresta Amazônica, contudo, é contestada por especialistas.

Conforme a coluna revelou em dezembro, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) informou em setembro ao MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações) que um satélite de banda X nos mesmos moldes pretendidos pelo Ministério da Defesa "não é apropriado para o monitoramento do desmatamento na Amazônia".

Especialistas falam em militarização, descalabro e absurdo pela falta de transparência

O cientista Gilberto Câmara, que dirigiu o Inpe de 2005 a 2012 e é diretor do GEO (em português, Grupo de Observação da Terra), uma parceria intergovernamental entre mais de cem países-membros, a Comissão Europeia e 115 organismos internacionais, disse que o sigilo sobre o contrato de aquisição do satélite é injustificável porque "o que está em jogo é a preservação ambiental, que é uma missão civil, conforme estabelecido na Constituição".

Para o especialista, o sigilo mostra a insegurança dos compradores na hora de justificar, com argumentos técnicos, o tamanho do gasto em plena pandemia do novo coronavírus.

"A lógica que está por trás é a seguinte: 'Eu quero transformar o monitoramento ambiental numa ação militar. E tirar a transparência das informações'. Porque a transparência incomoda. O mundo todo está criticando o país. Com o [presidente norte-americano Joe] Biden só vai piorar. Essa ação militar no fundo é uma tentativa - a gente não sabe se a gente se eles vão conseguir - mas está claro que eles estão tentando militarizar o monitoramento ambiental."

Segundo Câmara, o Inpe "nunca fez compras públicas sob sigilo", inclusive de equipamentos que foram utilizados na fabricação do satélite brasileiro que deverá ser lançado nos próximos dias na Índia, o Amazônia 1, que vem sem aprontado há anos.

"O Brasil faz satélite de monitoramento ambiental, a Europa faz, as imagens de vários desses satélites estão disponíveis gratuitamente. O satélite a ser comprado é conhecido, as especificações estão na internet. Qual a lógica de dizer que não se pode ler um contrato? Não é um satélite espião, não é um programa de criptografia de eleições, por exemplo. O objeto da compra é mais do que conhecido. O respeito à questão do dinheiro público tem que prevalecer. Não posso dizer que 'o dinheiro é meu, não dou satisfação pelo uso'. A responsabilidade é grande, você não é dono de nada."

Fabiano Angélico, pesquisador e consultor para temas de accountability social, transparência e integridade, especialista no tema do acesso à informação e autor do livro "Lei de Acesso à informação: reforço ao controle democrático", disse que o sigilo sobre os dados relativos ao contrato "é muito grave" porque se trata de uma compra pública, "não um documento preparatório ou um relatório sobre uma alguma ação".

"Em época de pandemia, de escassez de recursos, isso [sigilo] é um escândalo, é um descalabro. Qualquer compra feita com ou sem licitação precisa ser feita de forma o mais transparente possível, É evidente que pode haver casos em que o sigilo se justifique, mas [na resposta] o próprio órgão não justifica, fica muito difícil de analisar se faz sentido ou não."

Angélico alertou para o exemplo dado pelo Comando da Aeronáutica a outros órgãos públicos.

"Qualquer tipo de situação que possa representar um precedente para outros órgãos públicos, isso vai ser usado. Se algum outro órgão público tomar conhecimento dessa situação, 'Olha, o órgão aqui do lado fez uma compra de R$ 183 milhões e não abriu informações sobre o processo. Vamos fazer a mesma coisa'. É um precedente horroroso e não pode ficar assim."

O especialista também chamou a atenção para a transparência como ferramenta de prevenção contra a corrupção.

"Quando não há transparência em um gasto, aumenta a chance de haver corrupção. E se alguns grupos no Brasil consideravam que nas Forças Armadas não havia corrupção, acho que as últimas notícias derrubaram por terra esse argumento. Temos notícia de militares acusados de praticar tráfico internacional de drogas no avião da comitiva presidencial. Boa parte da justificativa para a gente pedir transparência é evitar corrupção. A transparência não é uma panaceia, mas ajuda a mitigar os riscos de corrupção. Em resumo é um descalabro, um absurdo, a FAB precisa dar explicação sobre todo o processo que desembocou nessa compra."

Júlia Rocha, assessora do programa de acesso à informação da organização não governamental Artigo 19, disse que "uma compra nesse valor, para um só item, tem normalmente que ser muito bem justificada. Isso dá confiabilidade ao governo, especialmente nesse momento, então ainda que não seja irregular, é sem dúvida questionável".

A especialista pontuou que o uso do satélite para monitoramento do desmatamento, por exemplo, não permite o argumento de "segurança nacional". Ela também levantou a necessidade de a sociedade civil ter acesso a todas as informações para debater a qualidade técnica de equipamentos adquiridos pela União.

"A consequência de se fazer políticas públicas que não sejam baseadas em fatos científicos e sem participação da sociedade civil é justamente essa: a concretização de uma política ineficiente, cara aos contribuintes e, porque não, passível de corrupção. Não estou dizendo que seja o caso, mas é importante pontuar."

Defesa havia empenhado R$ 145 milhões para a compra

Em agosto do ano passado, a coluna divulgou que o Ministério da Defesa iria adquirir um satélite por R$ 145 milhões nos mesmos moldes da atual aquisição. O valor apareceu em um empenho, ou seja, um compromisso de gasto, publicado pelo ministério em benefício do Censipam (Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia), órgão vinculado à pasta.

Quando foi revelada a primeira intenção do negócio, o Ministério da Defesa afirmou que iria utilizar recursos recuperados pela Operação Lava Jato.

A princípio, a pasta disse que o novo satélite iria "aprimorar a proteção da Amazônia" e serviria para "complementar o sistema Deter do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no período de maior cobertura de nuvens, já que o Deter utiliza imagens óticas". O Deter é um dos dois métodos usados pelo Inpe para identificar desmatamentos na Amazônia — o outro é o Prodes.

Com o passar dos dias, contudo, o ministério ampliou sua resposta e passou a dizer que o satélite também ajudaria no monitoramento da "Amazônia Azul", ou seja, a zona econômica exclusiva do Brasil no oceano Atlântico.

No contrato fechado no último dia 30 de dezembro, o Censipam saiu de cena e apareceu o Comando da Aeronáutica.

Na resposta ao UOL no dia 30 de dezembro, a Aeronáutica ampliou ainda mais a área de utilização do novo sistema ao dizer que ele integra um plano maior, o Pese (Programa Estratégico de Sistemas Espaciais), cujos objetivos envolvem "o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (Sisgaaz), o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), o Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro (Sisdabra), o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam) e afins".

Aeronáutica diz que busca cumprir "objetivos da estratégia nacional de defesa"

No dia 30 de dezembro, em nota, a Aeronáutica afirmou à coluna, na íntegra:

"Buscando cumprir os objetivos da Estratégia Nacional de Defesa, foi desenvolvido o Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE), que elencou capacidades a serem adquiridas no segmento aeroespacial brasileiro, para atender às necessidades estratégicas das Forças Armadas e da sociedade brasileira.

A aquisição de um microssatélite SAR, sendo operado pelo Centro de Operações Espaciais (COPE) da FAB, promove a soberania do país no monitoramento satelital por meio de imagens de radar.

Conforme publicado no Diário Oficial da União (DOU), de 22 de dezembro de 2020, foi instaurado um processo de dispensa de licitação enquadrado no artigo 24, inciso IX da lei 8.666/93 para a Aquisição de Sistema de Sensoriamento Remoto. Para selecionar o fornecedor, foi utilizado um processo de seleção previsto na DCA 400-6, do qual participaram 15 empresas. Este será o primeiro sistema do Projeto Lessonia-1, previsto no Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE), cujo principal objetivo é prover infraestrutura espacial para ser usada estrategicamente, e de modo potencializador, no Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), no Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON), no Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro (SISDABRA), no Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM) e afins.

O objeto do processo de contratação se refere à aquisição de um Sistema Espacial, compreendido por microssatélite, equipamentos de solo para a operação do sistema, integração dos equipamentos existentes ao sistema espacial, suporte logístico, serviços de lançamento e comissionamento, além de treinamento. A previsão de início de operação do sistema é no segundo semestre de 2022.

O contrato de aquisição, com grau de sigilo Reservado, foi assinado no dia 30 de dezembro de 2020."