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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Há 25 anos, plenário do STF rejeitou prisão em CPI por falso testemunho

07.jul.2021 - Ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, chegando ao Senado Federal para depor na CPI da Covid - Marcos Oliveira/Agência Senado
07.jul.2021 - Ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, chegando ao Senado Federal para depor na CPI da Covid Imagem: Marcos Oliveira/Agência Senado

Colunista do UOL

11/07/2021 04h01

Há quase 25 anos, em novembro de 1996, o plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou a prisão de uma testemunha que havia sido detida por suposto falso testemunho durante o depoimento que prestava a uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara dos Deputados.

O caso guarda semelhanças com a prisão do ex-diretor do Departamento de Logística em Saúde da Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias, cumprida na última quarta-feira (7) por decisão do presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM). A prisão gerou controvérsia entre especialistas em direito.

Segundo levantamento feito pela coluna, o processo julgado em 1996 pelo STF é o que mais se aproxima da prisão de Dias - as outras prisões que ocorreram ao longo dos últimos 30 anos em CPIs foram, em sua maioria, por suposto desacato, e não falso testemunho. Houve outra prisão por suposto falso testemunho, em 2003, do representante de uma rede de supermercados durante a CPI dos Combustíveis, mas o caso não chegou a ser julgado pelo plenário do STF.

No caso dos anos 90, Lacyr Vianna, então presidente da Associação Nacional de Autores, Compositores e Intérpretes de Música, foi preso na manhã de 25 de agosto de 1995 por ordem do então presidente da CPI do Ecad, o deputado Hermes Parcianello (PMDB-PR), enquanto prestava depoimento à comissão, sob a acusação de ter infringido o artigo 4º da lei 1597/52 (falso testemunho perante uma CPI). Instalada em 1995, a CPI do Ecad ( (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) investigou denúncias de supostos desvios no órgão responsável pelo recolhimento dos direitos autorais.

Na mesma noite da prisão, a defesa de Vianna foi ao STF e obteve um habeas corpus em favor do cliente, que logo foi libertado. Um ano e três meses depois, o mérito do processo foi a julgamento no plenário do STF (HC nº 73.035-3). Segundo o relator do habeas corpus, o ministro Carlos Velloso, a defesa manifestou "ilegalidade da prisão em flagrante do paciente [Vianna], pois, depondo como testemunha, não se poderia exigir que ele fizesse declaração que pudesse incriminá-lo".

"A doutrina e a jurisprudência não divergem nesse sentido", concordou o ministro do STF, citando o jurista Celso Delmanto, que escreveu que "não haverá falso testemunho se a testemunha, ainda que compromissa, mente para não se incriminar (autodefesa), pois há inexigibilidade de outra conduta".

Um parecer do Ministério Público Federal também apoiou a tese da defesa, ao dizer que "não configura o crime de falso testemunho aquele em que 'a testemunha, ainda que compromissada, mente para não se incriminar, pois há inexigibilidade de outra conduta".

Em seu relatório, o ministro Velloso também observou que "tem-se orientado a doutrina no sentido de que não constitui crime o fato de a testemunha ocultar a verdade para não se auto-incriminar". Ele citou obra de outro jurista, Damásio de Jesus, segundo o qual "inexiste delito quando a testemunha nega a verdade para não se incriminar".

Transcrevendo um voto que deu no julgamento de outro habeas corpus, Velloso afirmou que "o juiz deve declarar as razões por que manda efetivar a prisão. Membros da CPI, parlamentares, não têm o poder de decretar a prisão de ninguém. E não o têm por força da Constituição, que, legitimamente, votaram e promulgaram".

Celso de Mello escreveu que auto-incriminação "exonera" a testemunha

Em seu voto de 11 páginas, o ministro Celso de Mello disse que a jurisprudência do STF "jamais tolerou que a invocação da natureza interna corporis do ato emanado das Casas legislativas pudesse constituir - naquelas hipóteses de lesão atual ou potencial ao direito de terceiros - um ilegítimo manto protetor de comportamentos abusivos, iníquos e arbitrários".

Celso de Mello reconheceu o poder que as CPIs dispõem para "ordenar a intimação de indiciados e de testemunhas", uma prerrogativa jurídica "que tem natureza eminentemente instrumental em função da ampla ação investigatória da CPI na apuração dos fatos determinados que deram origem à sua formação".

O ministro também concordou que a pessoa convocada por uma CPI para depor "tem o tríplice dever: (a) de comparecer; (b) de responder às indagações e (c) de dizer a verdade". Porém, "tais pessoas não poderão ser constrangidas a responder a todas as perguntas que lhes sejam dirigidas" se, por alguma razão, estiverem sujeitas ao dever de sigilo profissional ou funcional e - aqui o ponto fundamental que tem relação com a CPI da Covid - "de algum modo, a resposta que lhes for exigida puder acarretar-lhes grave dano". Nesse ponto, o ministro faz referência aos artigos 406º do Código de Processo Civil e 3º do Código de Processo Penal.

"Sendo assim, a self-incrimination [auto-incriminação] constitui causa legítima que exonera o depoente - seja ele testemunha ou indicado - do dever de depor sobre os fatos que lhes sejam perguntados e de cujo esclarecimento possa resultar, como necessário efeito causal, a sua própria responsabilização penal", escreveu o ministro.

O relatório de Velloso recebeu votação unânime no plenário do tribunal (com os votos dos ministros Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio Melo, Ilmar Galvão, Francisco Rezek e Maurício Corrêa).

Aziz disse que Dias se "escusava de responder"

O advogado Marcelo Jorge, que representa Roberto Dias, viu semelhanças entre o caso dos anos 90 e a prisão do seu cliente na última quarta-feira, que ele considerou "totalmente improcedente".

"Ela [prisão] não preenchia os pré-requisitos. É preciso apontar de modo individualizado qual foi o fato mentiroso, depois apresentar a prova e por fim tem que fundamentar. Não cabe prisão 'para dar exemplo, para dar lição, para levar as instituições a sério, para acabar com a brincadeira'", disse Jorge.

O advogado disse que "contradição, no caso em concreto, não ocorreu". "O que ocorreu foi uma frustração em relação às respostas que se esperava obter. A mentira deve ser incontroversa e devem existir provas para demonstrar que a realidade não era naquele sentido. Forçaram muito a barra."

No momento da prisão, o presidente da CPI, Omar Aziz, assim explicou os motivos: "Eu já dei todas as chances para Vossa Senhoria. [...] Ele vai ser recolhido. Ele está mentindo desde manhã, dei chances para ele o tempo todo, pedi por favor, pedi várias vezes, e tem coisas que não dá para admitir. Os áudios que nós temos do Dominguetti são claros. Ele vai sempre arranjar uma desculpa. Vossa Senhora não quis dizer para a CPI porque foi tirado, porque tentaram tirar você da primeira vez, porque trocaram dois assessores diretos seus, o senhor sempre se escusando [eximindo] de responder. Aqui a pessoa... o senhor fez um juramento. Então estou pedindo, chamem a polícia do Senado, o senhor está detido pela presidência do Senado, [ou melhor] pela presidência da CPI".

Na ementa do julgamento de novembro de 1996, o STF assinalou: "Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la."