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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Militar da Funai libera obra em terra indígena que atende ocupação ilegal

Grupo de invasores cercou, em novembro de 2020, a base de operações do Ibama e da Funai na Terra Indígena Apyterewa, no Pará - Reprodução
Grupo de invasores cercou, em novembro de 2020, a base de operações do Ibama e da Funai na Terra Indígena Apyterewa, no Pará Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

24/07/2021 12h04

Em um ofício enviado à prefeitura de São Félix do Xingu (PA), o coordenador regional da Funai no sul do Pará, o capitão da reserva do Exército Raimundo Pereira dos Santos Neto, "autorizou" a recuperação de uma estrada dentro de uma terra indígena sem consultar as lideranças indígenas. A obra beneficiará as famílias não indígenas que ocupam ilegalmente a Terra Indígena Apyterewa, no sul do Pará.

Kaworé Parakanã, presidente da Associação Tato'a, que representa os parakanãs de Apyterewa, disse que os indígenas não foram ouvidos sobre a obra e que o ofício do coordenador será denunciado ao Ministério Público Federal e à própria Funai. "Ele não pode estar autorizando. Não aceitamos. Eles são a favor dos invasores. Eles são aliados da prefeitura de São Félix. A gente não foi consultado sobre isso. Nem informação prévia nem nada. A invasão está muito feia, muito ruim. Cada vez mais está entrando mais pessoas lá dentro", disse Kaworé.

O presidente da associação estima que há mais de 3 mil famílias ocupando irregularmente a Apyterewa.

A Apyterewa foi homologada pela Presidência da República em 2007 e reconhecida como território da etnia parakanã desde 1982. Um documento do governo fala em 5 mil invasores e 500 casas em apenas uma das vilas construídas dentro da terra indígena. Em um ponto do território o governo listou dois postos de gasolina, dois mercados, quatro igrejas, oficinais mecânicas, salão de beleza e até uma fábrica de beneficiamento de arroz.

O compromisso de o governo federal retirar essas famílias era uma condicionante judicial para que a União conseguisse a licença ambiental de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte (PA), inaugurada pela presidente Dilma Roussef em 2016. Parte das famílias foi retirada mas, em 2016, já no governo de Michel Temer, a União abandonou o plano.

O ritmo da invasão aumentou a partir da posse do presidente Jair Bolsonaro, segundo os indígenas, pois os invasores viram uma oportunidade de tentar reduzir a demarcação do território indígena, de 770 mil hectares. Várias hostilidades foram registradas contra equipes de fiscalização que tentavam reprimir a onda de desmatamento e destruição do patrimônio ambiental.

Em novembro do ano passado, um grupo de invasores cercou a base de fiscalização, na qual estavam agentes do Ibama, da Força Nacional e depredou veículos. No mesmo ano, a prefeitura ajuizou um pedido, acolhido pelo STF (Supremo Tribunal Federal), para supostamente tentar uma "conciliação" com os indígenas que envolveria a redução do território. O governo Bolsonaro faria parte dessa "conciliação" por meio da AGU (Advocacia Geral da União).

É nesse ambiente de tensão que o representante da Funai emite a "autorização" de uma obra que beneficiará os colonos.

Os indígenas da Associação Tato'a disseram à coluna que só ficaram sabendo da obra a partir de um vídeo que circulou em aplicativo de telefone celular. Na gravação, o prefeito de São Félix, João Cleber (MDB), entregue a "autorização" da Funai a um suposto representante das famílias de colonos que ocupam a terra Apyterewa. O vídeo registra um discurso público do prefeito ocorrido na presença do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB).

"Eu como prefeito provoquei a Funai porque vivem aqui, governador, mais de 3 mil familiares do Apyterewa. Vivem ali jogado à míngua. E eu provoquei a Funai através do Raimundo Neto e ele autorizou que o município pode entrar com máquinas, recuperar as estradas lá dentro do Apyterewa. Tá aqui já autorização, vou passar já para a associação do Apyterewa", disse o prefeito no vídeo.

Vídeo mostra prefeito de São Félix do Xingu (PA), João Cleber (MDB), à esquerda, entregando uma autorização da Funai a representante de ocupantes não indígenas da Terra Indígena Apyterewa, no Pará - Reprodução - Reprodução
Vídeo mostra prefeito de São Félix do Xingu (PA), João Cleber (MDB), à esquerda, entregando uma autorização da Funai a representante de ocupantes não indígenas da Terra Indígena Apyterewa, no Pará
Imagem: Reprodução

"E a gente assim que terminar os eixos principais, o município vai entrar com as máquinas e recuperar as vicinais da associação do Apyterewa", afirmou Cleber, que em seguida chamou ao palco um líder dos ocupantes. "Betinho, queria te entregar para você, pode subir aqui, a autorização da Funai onde reconheceu realmente que você vive numa situação ali que tem que ser resolvida. Betinho, nosso parceiro [palmas]. Taí Betinho, a autorização."

O ofício, assinado por Neto em 24 de junho último, diz que a recuperação da estrada "não cerceará o direito de ir e vir dos habitantes locais". Afirma ainda que a obra na estrada "beneficiará os indígenas, os habitantes locais, a Funai, o Ibama, a Força Nacional, facilitando assim a trafegabilidade de suas viaturas em atividade de proteção, fiscalização e monitoramento territorial para recuperação e melhorias na vicinal do município".

"O coordenador Regional dos Kayapós do Sul do Pará e ordenador de despesas da Apyterewa autoriza a realização da recuperação da vicinal na região do paredão (Apyterewa), próximo ao distrito da taboca", diz o documento.

O ofício faz "ressalvas", ao mencionar que a autorização "não inclui licença para uso de imagens, som de voz dos indígenas para além do objeto desta autorização, não inclui acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade, não inclui acesso ao patrimônio genético". Por fim, diz que "fica expressamente proibida qualquer outra atividade dentro da terra indígena, que não aquela autorizada, não sendo permitida a exploração qualquer natureza sob pena de responsabilidade nas esferas administrativas, civil, penal e ambiental".

A Funai em Brasília, o prefeito João Cleber e a prefeitura de São Félix do Xingu foram procurados pela coluna na manhã desta sexta-feira (23), mas não houve resposta a um pedido de esclarecimentos. Se houver manifestação, este texto será atualizado.