Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Atuação de ruralistas para adiar julgamento no STF expõe 'operação casada'
Se ainda pairava no ar alguma dúvida sobre a estratégia, ela se dissipou com a palavra do vice-presidente da bancada ruralista no Congresso, o deputado Neri Geller (PP-MT). Em entrevista a um portal que propõe ser "meio de comunicação do produtor rural" publicada na última quarta-feira (25), Geller explicou que a bancada, com apoio da Casa Civil e do Ministério da Agricultura do governo Bolsonaro, trabalhava junto ao STF (Supremo Tribunal Federal) para ganhar mais tempo no julgamento sobre a tese jurídica do "marco temporal" enquanto tenta passar um projeto de lei, o de nº 490, no plenário da Câmara dos Deputados.
O projeto de lei se arrastava desde 2007 sem solução pela Casa, mas ganhou força na gestão de Arthur Lira (PP-AL), tendo sido aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), comandada pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), e aprontada para ir ao plenário. O projeto é denunciado pelas principais organizações indígenas e indigenistas em decorrência das inúmeras alterações que impactarão a preservação e a demarcação das terras indígenas no país, além de incorporar a tese ruralista do "marco temporal".
Nesta quinta-feira (26), o julgamento no STF foi postergado por decisão do presidente do tribunal, Luiz Fux, até a próxima quarta-feira (1) - foi o quinto adiamento desde 2019.
Em entrevista à coluna nesta sexta-feira (27), o deputado Geller afirmou: "Nós, da Frente Parlamentar, temos sim intenção, inclusive somos parte interessada nessa pauta. O nosso jurídico está junto com isso. E essa semana com a votação nós, sim, se movimentamos no sentido de ter o espaço pra fazer manifestação para que essa matéria vá para a pauta [do STF] de preferência mantendo o 'marco temporal' e se não manter o 'marco temporal', se a gente conseguisse empurrar um pouco para a frente pro Congresso fazer sua parte e votar a regulamentação disso".
Assim, diz o deputado, o pedido nas conversas com ministros do STF tem duplo objetivo: que o "marco temporal" seja mantido; se não for, que o julgamento seja postergado - quem sabe até por um pedido de vista de algum ministro - a fim de que o Congresso possa votar o PL 490.
O parlamentar - que é vice-presidente da FPA (Frente Parlamentar do Agronegócio) - disse que não sabe se o adiamento desta quinta-feira no STF foi motivado pelo pedido da Frente. Se foi, disse ele, ficaria feliz.
"Nós fizemos sim, somos parte interessada, mas eu não estou falando que o pedido foi acolhido. Até porque não é isso que aconteceu ontem. Ele ficou para a semana passada por uma questão interna lá. Se tivesse disso, lógico que eu iria ficar feliz, seria um ganho político pra nós. Mas não, não, até agora eu não posso dizer isso, porque acho que não foi isso. Pode ter ajudado, pode ter ajudado. Eu sei que foi adiado, mas ele ficou na pauta, ele não foi tirado da pauta. [...] Posso checar essa informação um pouco melhor. Não sei se ele foi adiado em função da atuação nossa. Se tivesse sido, eu iria falar isso com muita felicidade, porque seria importante politicamente pra nós."
Indagada pela coluna se a FPA manteve contato com o ministro Luiz Fux no sentido de adiar o julgamento nesta semana, a assessoria do STF respondeu o seguinte em uma frase: "A retomada do julgamento do RE 1017365 [recurso extraordinário] está mantida para a próxima quarta-feira (1)".
Geller disse que não se encontrou pessoalmente com ministros do STF nos últimos dias e que o pedido da FPA foi feito por advogados da entidade.
"Esse tema [marco temporal] voltou agora no Supremo. Está sim para ser votado. Mas nós conseguimos, estamos fazendo a atuação muito forte no Supremo para que o Supremo espere a gente trabalhar e votar o PL 490 que regulamenta isso de forma definitiva [...]", revelou Geller ao site "Notícias Agrícolas" na quarta-feira (25).
Na entrevista ao site, também divulgada pelo observatório do agronegócio "De olho nos ruralistas", o deputado disse que "toda a diretoria da FPA, junto com a ministra, Tereza Cristina [Agricultura], junto com a Casa Civil, para que a gente dê essa... essa... essa consciência ao próprio presidente [do STF], ministro Fux, para numa eventual decisão, de hoje - de preferência tirar da pauta, isso é o que nós estamos trabalhando, para que a gente dê as condições ao Congresso, na próxima semana ou nos próximos 15 dias, votar o PL 490, para fazer a regulamentação". Numa segunda hipótese, disse Geller, se a votação fosse confirmada, que "se vote a favor da decisão que já impera hoje desde 2009".
Enquanto 6 mil indígenas de 173 povos diferentes de todos os Estados brasileiros, segundo os organizadores, estão acampados desde o dia 22 e passando dificuldades em barracas de lona no clima seco de Brasília, o presidente do STF, Luiz Fux, fez pelo menos três movimentos desde quarta-feira que coincidem com as iniciativas da bancada ruralista reveladas por Neri Geller.
Na mesma quarta-feira da entrevista do deputado, foi anunciada uma novidade na pauta da votação da quinta-feira (26). Cabe ao presidente do STF definir as prioridades. Em vez de iniciar a sessão com o processo sobre o "marco temporal", foi colocado em discussão um processo que questionava a autonomia do Banco Central, o que tomou quase toda a tarde da quinta-feira.
Superada essa votação, no final da tarde o tribunal enfim deu início ao julgamento do caso do "marco temporal", um recurso extraordinário protocolado há mais de 12 anos pelo governo de Santa Catarina contra indígenas Xokleng. Após um rápido resumo do voto do relator, Edson Fachin, contrário à tese ruralista, o esperado era que o julgamento prosseguisse e ganhasse velocidade, ainda que não acabasse no mesmo dia.
Em vez disso, Fux anunciou ao microfone que aceitaria 38 sustentações orais, entre advogados das partes e amici curiae, com 5 minutos de duração para cada palavra, o que resultará em cerca de 3 horas de argumentação. Fux disse então que ficaria inviável o prosseguimento do julgamento naquele dia.
O relógio marcava 18h00. A sessão não poderia ter seguido talvez até 21h00, a fim de ouvir todas as sustentações? O presidente do tribunal entendeu que não, e jogou o retorno do julgamento para quarta-feira (1) - o quinto adiamento do processo desde 2019.
E assim os dias vão passando lentamente, cansando os indígenas acampados, esgotando seus recursos financeiros - várias vaquinhas virtuais são organizadas para suprir as necessidades dos acampados -, e principalmente dando tempo para a bancada ruralista respirar e se articular, no dizer do próprio Geller.
Além disso, os indígenas poderão receber outras notícias indigestas. Na quarta-feira, após a longa sustentação oral autorizada por Fux, há ainda a possibilidade de algum dos ministros do STF - aposta-se no nome óbvio de Kassio Nunes Marques - pedir vista do processo, o que provocaria o sexto adiamento do julgamento. Um pedido de vista pode durar semanas, meses ou até anos, como ocorre em alguns processos no STF.
Os indígenas dizem que vão resistir no acampamento até a retomada do julgamento na semana que vem. A liderança indígena munduruku Alessandra Korap postou em seu perfil no Twitter nesta sexta-feira (27): "Querem nos cansar, tem pessoas doente porque a comida é diferente, o clima é diferente, mas uma coisa que ele [Fux] não sabe, somos resistência mais 521 anos, sempre tenta nos cansar mais não vão. Sawe [grito de guerra]".
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