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Rubens Valente

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Seis mil indígenas em vigília por julgamento que atinge demarcações no país

Colunista do UOL

25/08/2021 07h00Atualizada em 25/08/2021 20h43

Na manhã de ontem (24), no café de um hotel em Brasília, a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas na Câmara, encabeçada pela única parlamentar federal indígena no país, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), reuniu alguns dos principais líderes indígenas do país - como o yanomâmi Davi Kopenawa e o suruí Almir Narayamoga - para concentrar forças e avaliar um julgamento que mobiliza atenções no STF (Supremo Tribunal Federal).

"Queremos que o STF se posicione e diga que é um absurdo a tese desse 'marco temporal'. Do contrário é referendar a violência, porque os indígenas foram arrancados de suas terras", discursou ao microfone a deputada Erika Kokay (PT-DF).

Joenia contou à coluna que, um dia antes, havia discursado num encontro virtual sobre liberdade de expressão promovido pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) com a presença do presidente do STF, Luiz Fux. "Eu falei da importância de o STF ouvir os indígenas e que esse julgamento pode ser a consagração dos direitos fundamentais previstos na Constituição ou um retrocesso", disse a parlamentar.

O deputado Airton Faleiro (PT-PA) disse que está em curso "uma tentativa de apropriação dos territórios indígenas" e que os indígenas "são o segmento social mais atacado, a começar [os ataques] pelo presidente da República".

Seis mil indígenas de 173 povos indígenas de todas as unidades da Federação montaram, na Praça da Cidadania na Esplanada dos Ministérios, o maior acampamento indígena da história de Brasília, segundo os organizadores. Eles aguardam em vigília o resultado do julgamento que deverá ser um divisor de águas no tema da demarcação das terras indígenas no país.

Depois de 12 anos de tramitação entre primeira instância e tribunais superiores, o Recurso Extraordinário nº 1017365 - que discute uma reintegração de posse ajuizada por um instituto do governo estadual de Santa Catarina contra os Xokleng, em Santa Catarina (SC) - deveria ter sido julgado pelo plenário do STF em junho passado, mas foi retirado de pauta após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

O julgamento agora está marcado para começar às 14h00 de hoje (25). Há dúvidas, porém, se isso de fato vai ocorrer - na última hora, apareceu na pauta outro processo, a respeito da lei que estabeleceu autonomia do Banco Central.

Segundo indígenas e indigenistas, caso a tese cara ao agronegócio receba a maioria dos votos dos ministros, vai ficar prejudicada e, em alguns casos, inviabilizada a demarcação de mais de 700 territórios. A conta inclui processos já em andamento, mais de 200, e os outros ainda não iniciados.

Voto de relator é contrário a marco temporal

No seu voto apresentado em junho, quando o julgamento foi suspenso, o relator do processo, o ministro Edson Fachin, já reconheceu a posição dos indígenas a fim de impedir que a tese do "marco temporal" - levantada pelo governo Bolsonaro e, antes, pelo governo Temer, por representantes do agronegócio e por alguns ministros do próprio tribunal em outros julgamentos - seja estendida a todos os processos de demarcação das terras indígenas no país.

"Entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania", escreveu Fachin.

raposa do sol - Tuca Vieira/Folha Imagem - 28.abr.2004 - Tuca Vieira/Folha Imagem - 28.abr.2004
Terra indígena Raposa Serra do Sol, localizada no estado de Roraima
Imagem: Tuca Vieira/Folha Imagem - 28.abr.2004

Nos casos anteriores, como na demarcação da terra Raposa/Serra do Sol, em Roraima, em 2009, o STF não havia definido diretamente sobre a aplicação do suposto "marco temporal" nos outros processos em andamento no país.

Em 2019, o STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do atual julgamento, ou seja, ele servirá para fixar uma tese de referência para todos os casos em andamento no Judiciário.

A tese jurídica do "marco temporal" - não prevista na Constituição de 1988 - diz que os indígenas só teriam direito à demarcação se estivessem sobre as terras em 5 de outubro de 1988 ou se estivessem em disputas judiciais ou físicas, na mesma data, sobre o território. Essa tese não aparece na Constituição. O único prazo previsto na Carta sobre o tema indígena foi o dever da União, e não dos indígenas, de identificar e demarcar as terras dentro de cinco anos a contar da promulgação da Carta, em outubro de 1988.

Para se ter ideia do interesse que o processo desperta no STF, basta ver que 78 pessoas jurídicas foram habilitadas na condição de amicus curiae: 41 (ou 52,6%) favoráveis aos indígenas nos termos do voto do relator Fachin e 37 (47,4%) favoráveis à tese defendida pelo agronegócio.

O julgamento é "a principal demanda em tramitação nesta Suprema Corte de Justiça envolvendo os direitos constitucionais dos Povos Indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam", no dizer das organizações não governamentais que defendem os indígenas.

De um lado como amicus curiae - da expressão em latim "amigo da corte", cuja função é subsidiar uma autoridade judicial com informações para a tomada da decisão -, estão as principais organizações indígenas e indigenistas, entre as quais a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e de outro os maiores representantes do agronegócio, como a CNA (Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária), um dos principais grupos de pressão em Brasília.

Tese foi criada para tentar inviabilizar demarcações, diz especialista

A procuradora da República aposentada Deborah Duprat, ex-subprocuradora-geral da República, que no processo representa a AJD (Associação Juízes para a Democracia), em defesa dos indígenas, disse que o julgamento deverá se tornar "uma reflexão sobre o que foi o julgamento da Raposa/Serra do Sol na vida real dos povos indígenas e da sociedade brasileira".

"Por que aquele caso deve ser superado? Porque deu um péssimo resultado no mundo real dos povos indígenas. No caso da Raposa, as condicionantes são defensivas, querem segurar o máximo de terras como não indígenas e querem dizer que os indígenas não estão aptos a fazer uma serie de gestões nas suas terras. Macula as principais ideias consagradas na Constituição, como autonomia, autodeterminação, igualdade", disse Deborah.

Juliana de Paula Batista, advogada do ISA (Instituto Socioambiental), disse que a eventual derrota da tese do "marco temporal" levaria automaticamente à revogação do parecer da AGU de 2017 e a modificação ou recusa de vários projetos de lei anti-indígenas que hoje tramitam no Congresso sob a alegação de seguirem a lógica do "marco temporal".

"Essa tese foi criada para tentar inviabilizar as demarcações. Se o STF rechaçar a teoria, vai garantir maior segurança jurídica para que os processos possam ser finalizados. É preciso lembrar que a maior parte das terras indígenas na Amazônia já foi demarcada O passivo que temos é pequeno e a maior parte é fora da Amazônia, nos lugares onde os índios estão sofrendo muitas ameaças e violências justamente porque existe uma expectativa de anulação das demarcações. É absurdo, porque as comunidades não teriam para onde ir, seria um processo da 'aculturação' forçada", disse a advogada.

No lado dos ruralistas, várias bancas de advogados foram mobilizadas para atuar no processo, como a do ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Marcus Vinicius Furtado Coêlho, que apresentou um parecer do advogado Lênio Streck pela Associação Brasileira dos Produtores de Algodão e outras organizações agrícolas.

Na sua manifestação, Streck, conhecido crítico da Operação Lava Jato, argumentou que "o julgamento do caso Raposa Serra do Sol pode ser conhecido como um autêntico e genuíno precedente, caracterização essa que independe da existência de um verniz formal (ou técnico) para a produção de efeitos normativos".

Em seu voto de junho, Edson Fachin já havia atacado esse argumento: "Efetivamente, é o caso de revisão das razões que levaram à prolação da Pet nº 3.388 [Raposa], em especial de suas condicionantes e da chamada 'teoria do marco temporal'. Primeiramente, ressalte-se que o próprio reconhecimento, à unanimidade, da necessidade de formação de precedente vinculante em relação ao tema das relações possessórias nas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, sem a reafirmação de jurisprudência, já indicavam, de modo inequívoco, que este Tribunal propunha-se a revisitar a matéria".