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Rubens Valente

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

O monitoramento do Cerrado está à beira do colapso por falta de dinheiro

Área de transição entre Cerrado e Amazônia ocupada por pastagem na região da Serra do Roncador, em Mato Grosso - Rubens Valente / UOL
Área de transição entre Cerrado e Amazônia ocupada por pastagem na região da Serra do Roncador, em Mato Grosso Imagem: Rubens Valente / UOL

Colunista do UOL

20/09/2021 07h00

Em uma live promovida pela Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso na última quinta-feira (16), o tecnologista sênior do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) Luís Maurano não deixou dúvida: se nada acontecer até o final de dezembro, já em janeiro "o projeto praticamente termina por falta de equipe técnica para manter o sistema em pé".

Trata-se do monitoramento, por imagens de satélite, da supressão da vegetação do Cerrado brasileiro, um serviço executado desde 2000 fundamental para a produção dos números oficiais do país e para alertar e subsidiar as operações de controle e combate a desmatamentos, incêndios e outros tipos de degradação no segundo maior bioma da América do Sul, com 2 milhões de km², ou cerca de 22% do território nacional.

Desde junho o próprio Inpe e organizações não governamentais vêm alertando - conforme revelado naquele mês pelo site "O Eco" - diversos ministérios do governo de Jair Bolsonaro, como o MCTI (Ciência e Tecnologia), o MMA (Meio Ambiente) e a Agricultura, sem uma solução.

Em dezembro acabará, sem a opção de uma nova renovação, que já havia sido feita em dezembro de 2020, o financiamento extra-orçamentário do Banco Mundial pelo qual o Inpe desenvolve, implementa e divulga dois programas de monitoramento voltados para o Cerrado. Para mantê-los, seriam necessários apenas R$ R$ 2,5 milhões por ano, uma quantia ínfima no conjunto do Orçamento da União (a previsão para 2021 foi de R$ 144 bilhões em gastos não obrigatórios).

A coluna procurou o Inpe, que confirmou, nesta sexta-feira (17), o risco enfrentado pelo desmatamento: "Até o presente momento, ainda não houve uma solução definitiva. Outras fontes extra-orçamentárias estão sendo exploradas para o financiamento das atividades do Prodes/Deter Cerrado mas ainda não garantiram o aporte. Ou seja, há possibilidade do monitoramento do bioma Cerrado ser interrompido após janeiro de 2022, caso as iniciativas em curso não obtenham sucesso, conforme mencionado no Memorando nº 5504/2021/INPE(7600198), Memorando nº 5928/2021/INPE (7694467) e Ofício nº 1079/2021/INPE (7719450)". Leia, ao final do texto, a íntegra da resposta assinada pelo diretor do Inpe, Clezio Marcos De Nardin.

Sem o dinheiro, o instituto terá que desligar sumariamente pelo menos 26 funcionários especializados, segundo a palestra virtual de Maurano, o que provocará a paralisia dos programas.

O financiamento dos programas voltados para o Cerrado é diferente do executado para a Amazônia, que tem recursos assegurados ano a ano no Orçamento da União. Desde 2002, quando entrou em operação, a ação relativa ao Cerrado é mantida por recursos de fora do Orçamento. A fonte variou ao longo dos anos e incluiu o banco estatal alemão KfW e outros parceiros.

A fase mais recente, iniciada em junho de 2016 e com término previsto para dezembro próximo, foi incluída no programa FIP (Forest Investment Program) por meio de um contrato de doação de US$ 4,4 milhões firmado entre o Banco Mundial e o MCTI, hoje comandado pelo ministro Marcos Pontes, militar reformado da Aeronáutica.

Os dois programas em risco, o Prodes Cerrado e o Deter Cerrado, utilizam imagens dos satélites LandSat 8, CBERS 4/4A e Sentinel 2. Ao longo de 20 anos, de 2000 a 2020, o Inpe conseguiu mapear uma destruição da vegetação de cerca de 290 mil km² no Cerrado.

O Prodes Cerrado produz a taxa anual de desmatamento do Brasil. Os dados são consolidados uma vez por ano e alimentam o portal de internet Terra Brasilis, onde é possível conferir as séries históricas. O Deter Cerrado emite, desde 2018, alertas diários de desmatamentos e incêndios quase em tempo real, trnando-se uma ferramenta importante para os órgãos de controle.

Especialistas vêem retrocesso grave e sem precedentes

O geógrafo Yuri Salmona, da organização não governamental Instituto Cerrados, disse à coluna que o fim do monitoramento é "gravíssimo".

"É um retrocesso sem precedentes e uma das coisas mais graves que poderia ocorrer com o Cerrado nesse momento. O Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo, com cerca de 5% da biodiversidade do planeta. É a caixa d'água do país e o Brasil tem uma série de compromissos internacionais quanto à mudança climática. Temos compromisso, por exemplo, de não plantar sem desmatamento. Para provar isso, temos que monitorar. Pergunto como é que vamos continuar dando pequenos avanços no campo da gestão territorial se a gente não sabe quanto está sendo desmatado. São dados também essenciais para ações de comando e controle."

O advogado Guilherme Eidt, assessor de políticas públicas da organização não governamental ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), disse que a verba poderia ser obtida mais facilmente por meio de um termo de execução descentralizada que garantisse a transferência de recursos de outros setores do governo, como o Ibama, mas o MMA deu respostas evasivas até o momento e o MCTI não se manifestou. Ele disse que o bioma está em risco - nos últimos dois anos o desmatamento cresceu de 6,5 mil hectares para 7,3 mil hectares - e o monitoramento "é chave e estruturante para toda uma série de ações estatais, como as operações de comando e controle".

"O bioma Cerrado tem uma descontinuidade gritante de políticas públicas em termos de conservação. Apenas 8% são de UCs [Unidades de Conservação], apenas 3% têm proteção integral. Apenas 3% de todo o bioma. Vemos o aumento do desmatamento, o aumento da grilagem de áreas então preservadas."

Ministérios silenciam sobre risco ao monitoramento

Procurados pela coluna nesta sexta-feira (19), o MCTI (Ciência e Tecnologia) e o MMA (Meio Ambiente) não se manifestaram até o fechamento deste texto.

Numa resposta à Câmara dos Deputados no último dia 31, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Alvaro Pereira Leite, lavou as mãos: "Por fim, recomendo que informações específicas sobre equipamentos ou recursos orçamentários destinados aos Inpe sejam encaminhadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação, instituição à qual o Inpe está vinculado".

Também procurado pela coluna, o Inpe foi o único a enviar esclarecimentos, na íntegra:

"Para o bioma Cerrado, os sistemas PRODES e DETER, são financiados com recursos do Forest Investment Program - FIP, em um contrato de doação firmado entre o Banco Mundial e o MCTI. O referido contrato será finalizado em dezembro de 2021. A Direção do INPE, ciente dessa questão vem trabalhando junto com o MCTI, e com a Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Rural e Irrigação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), para obtenção de recursos para esta atividade dentro do projeto FIP-Paisagens, que tem forte relação com o monitoramento do desmatamento, e está sob a gestão do Serviço Florestal Brasileiro, órgão do MAPA. Entretanto, até o presente momento, ainda não houve uma solução definitiva. Outras fontes extraorçamentárias estão sendo exploradas para o financiamento das atividades do PRODES/DETER Cerrado mas ainda não garantiram o aporte. Ou seja, há possibilidade do monitoramento do bioma Cerrado ser interrompido após janeiro de 2022, caso as iniciativa em curso não obtenham sucesso, conforme mencionado no Memorando nº 5504/2021/INPE(7600198), Memorando nº 5928/2021/INPE (7694467) e Ofício nº 1079/2021/INPE (7719450).

O Programa de Monitoramento da Amazônia e demais biomas recebe recursos orçamentários através da ação 20V9.PO0001. Entretanto os recursos hora alocados cobrem somente as ações de monitoramento da Amazônia Legal brasileira e os mesmos estão previstos na PLOA 2022, com eventuais acréscimos e correções sendo discutidos. Para os demais biomas brasileiros o INPE vem contando com recursos extraorçamentários, como explicado na resposta anterior.

Os recursos para o monitoramento da Amazônia Legal brasileira estão previstos na PLOA 2022. Para os demais biomas brasileiros o INPE vem contando com recursos extraorçamentários, como explicado na resposta anterior.

O INPE reiteradamente vem buscando formas para garantir a continuidade do monitoramento dos demais biomas brasileiros. Cabe destacar que o Instituto continuará disponibilizando os dados da mesma maneira que vem sendo atualmente, através da plataforma TerraBrasilis com os dados abertos a toda comunidade."