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PM capixaba ordena devassa virtual contra o grupo "Policiais Antifascismo"
A Corregedoria da Polícia Militar do Espírito Santo determinou um levantamento completo sobre páginas e redes sociais do grupo de "Policiais Antifascismo" do Estado na internet a fim de localizar "postagens indevidas". A ação foi desencadeada dentro de processos administrativos movidos pela corporação contra um capitão que teria feito "críticas ao governo federal" e um cabo que teria integrado "movimento contra o governo federal", entre outras acusações.
Indagada pela coluna se uma devassa semelhante foi feita sobre PMs de direita ou de extrema-direita, a PM capixaba disse que todos os policiais "estão igualmente vinculados ao referido regramento, independente de postos ou graduações, bem como de quaisquer inclinações ideológicas ou partidárias". Leia ao final a manifestação da PM na íntegra.
A Rede Liberdade - uma articulação formada por advogadas e advogados e representantes de entidades da sociedade civil para a atuação jurídica em casos de interesse público de violação de direitos e liberdades individuais - vê na ordem da PM uma afronta à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que, em agosto de 2020, ordenou que o Ministério da Justiça suspendesse a produção de dossiês - revelados pela coluna em julho de 2020 - que também listavam e miravam policiais e professores antifascistas.
"Entendemos que a PM do Espírito Santo está fazendo exatamente aquilo que o STF disse que não podia fazer. Está direcionando uma investigação, que chamamos de 'fishing expedition' [pescaria de provas], completamente vaga, sem nenhuma finalidade específica, genérica, contra um movimento da sociedade civil. Isso é uma perseguição contra grupos específicos, isso é ilegal, inconstitucional, que é o mesmo risco que existia com aquele dossiê elaborado pelo governo federal", disse a coordenadora jurídica e advogada da Rede Liberdade, Juliana Vieira dos Santos.
Capitão virou alvo por fazer críticas a Bolsonaro
As ordens para a devassa virtual estão formalizadas em dois despachos assinados em agosto último pelo chefe da Divisão Corporativa de Investigação Correcional da PM capixaba, o tenente-coronel Gelson Lozer Pimentel. Em dois despachos no bojo de duas "Investigações Preliminares Sumárias", ele determinou a um seu subordinado, o capitão Giovano Pacanha Bailotti: "verificar postagens indevidas em redes sociais envolvendo o grupo denominado 'Policiais Antifascismo'" e "verificar páginas eletrônicas do grupo".
Os despachos para a "realização das diligências" integram dois PADs (Processos Administrativos Disciplinares) abertos pela PM contra o capitão PM Vinicius Cassio Correa de Sousa e o cabo PM Vinicius Querzone de Oliveira Sousa.
O capitão Sousa, formado em direito e pós-graduado em gestão pública, é alvo de dois PADs. O primeiro foi aberto em julho último depois que o capitão, em trajes civis e fora do horário de trabalho, participou de uma manifestação contra o presidente Jair Bolsonaro em 19 de junho no município de Marataízes (ES). Um relatório sobre a suposta presença do capitão no ato foi produzido, com vídeos e fotografias, por um setor da PM da 9ª Companhia Independente da PM.
"O oficial fez uso do microfone para exprimir suas insatisfações contra o governo federal; durante sua fala o capitão Sousa pediu um minuto de silêncio pelos policiais vitimados pela Covid-19", diz o relatório assinado pelo major Luciano Nunes Buzim, comandante da 9ª Companhia. Ou seja, segundo a própria PM, o capitão Sousa não atacou nem criticou seus superiores nem a PM do Espírito Santo.
PM sofre um segundo processo após falar do primeiro
Depois do relatório, a Corregedoria copiou quatro postagens do capitão na rede social Facebook. A coluna não encontrou, nas manifestações, nenhuma crítica do capitão aos seus superiores ou à PM capixaba. Sousa fala sobre o contexto nacional. "Repito a fala de Boulos: 'Não dá para olhar passivamente o Brasil sangrar até 2022, perdendo vidas à espera das eleições", diz, por exemplo, um texto na rede social atribuído pela PM a Sousa.
A PM buscou uma outra publicação de Sousa em outra página atribuída ao policial no Facebook. O texto diz que o PM participou de uma conversa com o deputado federal Helder Salomão (PT-ES) e a deputada estadual Iriny Lopes (PT-ES). Na conversa, diz a postagem, os deputados "ouviram nossas posições" e "dialogaram sobre como o presidente Lula resolveu o problema do desemprego, aumentou o salário, melhorou a economia e a vida das pessoas".
A Corregedoria fez uma consulta ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que respondeu que Sousa "não está filiado a partido político" e que ele se desligou do PT (Partido dos Trabalhadores) há quase 12 anos, em 21 de novembro de 2009. Em 2020, sites na internet noticiaram que Sousa, pela Rede, disputou a vice-prefeitura de Cachoeiro do Itapemirim (ES). Essa informação, contudo, não consta do processo administrativo disciplinar movido contra o capitão.
No "libelo acusatório" contra Sousa, a autoridade processante do PAD, o major Walter Francisco de Araújo Filho, afirmou que o capitão infringiu o artigo 43 da Constituição estadual, que diz que o militar em serviço ativo "não poderá ser filiado a partido político nem exercitar atividade político-partidária", e dois artigos da Lei Complementar 962, de 2020, que fala em "transgressões disciplinares".
Como "atenuantes", o major reconheceu que o capitão nunca teve registro de infração disciplinar na sua carreira, nunca sofreu punição nem foi beneficiado por algum termo de ajustamento de conduta.
O libelo é datado de 16 de agosto último. Dez dias depois, a Corregedoria abriu um segundo PAD contra o capitão Sousa. Dessa vez, o processo partiu de entrevistas que o capitão concedeu à imprensa capixaba para falar exatamente do primeiro processo. A reação de Sousa foi divulgada pelos sites ES Hoje, "A Tribuna" e "A Gazeta", entre outros.
Ao "Século Diário", Sousa declarou sobre o movimento "Policiais Antifascismo": "Embora seja um movimento orgânico, mais relacionado ao social, não está ligado à área partidária. Nosso papel, com qualquer movimento social, é fazer pressão sobre pautas de interesse coletivo. Não tem a pretensão, por exemplo, de se organizar por meio de uma atividade partidária regular, com formação de chapas para as eleições. Nada disso, o movimento faz o debate público e pressiona os atores da política institucional. Então nesse sentido aí, o movimento se relaciona, mas de forma independente, construtiva".
Cabo cita descriminalização de drogas e acaba processado
O PAD contra o segundo policial militar do movimento antifascista, o cabo Querzone, teve seu "libelo acusatório" datado de 29 de outubro último. A peça subscrita pelo capitão Sidney Machado Junior diz que o PM é acusado de "ter postagens no site 'ES Hoje', [...] bem como na rede social 'Instagram', no perfil denominado 'policiais.antifascismo.es' com fotografias, vídeos e comentários não condizentes com a disciplina militar, tecendo críticas a autoridades constituídas e administração militar". Ainda segundo o libelo, também por "defender descriminalização e regulamentação das drogas".
A publicação mencionada pela Corregedoria é datada de junho de 2020. Não fica claro por que o cabo só foi citado em outubro de 2021. No texto - que não é de autoria de Querzone, e sim do site "ES Hoje" - o cabo é citado como "um dos fundadores do movimento" chamado "Policiais Antifascismo", que teria cerca de 30 membros.
Ao cabo é atribuída apenas essa declaração: "Ainda estamos em construção. Não estamos consolidados como no Rio de Janeiro, Bahia, Paraná ou Goiás. Em um primeiro momento o que pretendemos é discutir os temas com a polícia. Posteriormente fazer um debate para fora com partidos, sociedades, em fóruns. O caráter do movimento é suprapartidário, conseguimos congregar vários setores com a segurança pública e isso nos ajuda a reunir forças nas pautas".
Constituição prevê liberdade de expressão, diz defesa dos PMs
A advogada da Rede Liberdade Juliana Vieira dos Santos diz que os PADs são "kafkianos, não há clareza sobre as ações específicas que deram origem a esses processos. No começo dizem uma coisa, depois outra. A primeira coisa fundamental do exercício da ampla defesa é saber do que se está sendo acusado."
Segundo a advogada, nenhum policial é proibido de fazer parte de um movimento como o dos "policiais antifascismo". Ela disse que as postagens e declarações do capitão Sousa e do cabo Querzone não são afrontas à hierarquia e à disciplina.
"As vedações do Código Penal Militar tratam da proteção contra a quebra da hierarquia. O que elas visam impedir é que o militar atente, de forma concreta, contra seus superiores. Os policiais [do ES] não fizeram nada disso. O presidente da República, por exemplo, não integra o quadro da hierarquia da PM. O governo federal é outra esfera. A PM nos Estados está dentro de um comando hierárquico que termina no governador. Criticar o presidente nunca seria um ato de indisciplina. A Constituição garante a todo mundo a liberdade de expressão e de manifestação. O que é diferente de se manifestar nos atos antidemocráticos, para subverter a ordem democrática, por exemplo."
Na defesa prévia apresentada em favor do cabo Querzone, a Rede Liberdade afirmou que que o direito fundamental à liberdade de expressão, expresso no art. 5º, IV da CF [Constituição], é alicerce do próprio regime democrático, e deve ser garantido aos funcionários públicos pela Administração Pública, sem perseguições ou censuras aos seus direitos enquanto cidadãos públicos". A peça é subscrita pelos advogados Beto Vasconcelos, Juliana Vieira dos Santos, André Perecmanis, Ana Luísa Ferreira Pinto, Antonio Atila Carvalho Ramos, Paula Cristina Santos Costa, Julia Palmeira Macedo e Breno Carrareto Coelho.
PM diz que apura "indícios de infração disciplinar"
Em nota à coluna, a PM do Espírito Santo afirmou, na íntegra:
"A Polícia Militar do Espírito Santo (PMES) informa que na Constituição Estadual está prevista a vedação ao militar de ser filiado a partido político, bem como exercer atividade político-partidária. No Estatuto dos Militares Estaduais e no Código de Ética e Disciplina dos Militares Estaduais também consta que é vedada a manifestação coletiva e política.
"No caso específico do capitão Sousa, houve uma comunicação de fato, contendo indícios de infração disciplinar, que estão sendo apuradas, em tempo regulamentar, e de acordo com as normativas mencionadas através do devido Processo Administrativo Disciplinar já instaurado. O militar neste procedimento terá a oportunidade de apresentar sua defesa e o contraditório.
"A Polícia Militar ressalta que tem premissas disciplinares bem consolidadas na legislação brasileira, especialmente através da Lei Complementar Estadual-ES Nº 962/2020, de 30DEZ2020, a qual aprovou o Código de Ética e Disciplina dos Militares Estadual-ES (CEDME).
"Nesse sentido, cumpre destacar que todos os seus integrantes estão igualmente vinculados ao referido regramento, independente de postos ou graduações, bem como de quaisquer inclinações ideológicas ou partidárias. Portanto, a Polícia Militar ressalta que, quando condutas em tese sujeitas a escrutínio sob o ponto de vista ético-institucional chegam formalmente ao conhecimento dos Escalões de Comando, são as mesmas, via de regra, ao seu tempo processual e isonomicamente, avaliadas em procedimentos próprios.
"Ressaltamos que a Corregedoria da PMES não pode comentar processos ainda em tramitação, sob pena de emitir juízos de valor que importem em nulidades processuais. A PMES esclarece que, nos termos do Art. 28, do CEDME, as transgressões disciplinares cometidas por militares estaduais podem eventualmente resultar em simples advertências ou até mesmo na exoneração. Todavia, podem também resultar em absolvições, sendo que a resolução de mérito para cada caso específico somente se consuma após respeitados os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal."
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