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Militar da Saúde diz que indígenas não produzem nada e "têm que trabalhar"
Declarações ofensivas a indígenas feitas pelo coordenador do DSEI (Distrito de Saúde Especial Indígena) do Ministério da Saúde na região do Araguaia, o suboficial reformado da Marinha Ronalde de Barros Ramos, geraram uma onda de indignação entre lideranças indígenas, que pedem providências e investigação do Ministério Público.
Na conversa ocorrida na última terça-feira (23) na sede do DSEI, em São Félix do Araguaia (MT), Barros reagiu asperamente a dúvidas sobre o atendimento da saúde na região levantadas pelo agente de combate a endemias do DSEI e educador indígena Luiz Flávio Juanahu Karajá, que também é membro do Considi, o conselho regional de saúde indígena cuja função é fiscalizar os gastos no setor.
Procurada pela coluna, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) em Brasília, que é dirigida também por um militar, Robson Santos da Silva, saiu em defesa de Barros, ao dizer que ele chefia o DSEI "com qualidade técnica". Disse ainda que as palavras de Barros se referiam a "uma situação pontual" (veja a íntegra da nota do ministério ao final deste texto).
O DSEI coordenado por Barros é responsável pelo atendimento de saúde a 43 aldeias de 16 etnias diferentes, com mais de 5,8 mil indígenas.
A coluna teve acesso à gravação, de 6min57s. Barros, que foi nomeado para o cargo no segundo ano do governo Bolsonaro, em janeiro de 2020, disse o seguinte a Juanahu: "Vocês não sabem porra nenhuma. Nada. Nem trabalhar vocês sabem. Um monte de terra, ninguém produz nada. Querem só ficar vivendo de miséria do povo, do governo. Vocês têm que ter vergonha na cara e trabalhar, pô. É isso que vocês têm que fazer. Aprender a trabalhar com 'tootori' [referência a não indígenas]. É isso que vocês têm que aprender. Nós temos que aprender, porque eu também sou índio. Eu sou índio, o senhor sabe disso. Eu sou mestiço. E aprendi a trabalhar. Eu nem preciso trabalhar mais, eu sou aposentado, eu ganho 12 mil reais da Marinha. E tenho mais duas casas alugadas. Eu trabalho dia e noite, quando eu sair daqui eu vou trabalhar lá fora. É isso que vocês, o nosso povo, tem que aprender a fazer, é trabalhar. Coisa que não fazemos. Há 500 anos nós fomos descobertos e nós não conseguimos trabalhar, aprender com 'tootori' [não indígena] a produzir. Vocês não eram para precisar de saúde indígena, de saúde de merreca de governo, nosso povo era para ser milionário pela terra que nós temos. O que falta para nós é disposição para o trabalho, é isso que está faltando pro nosso povo".
Ouça o áudio:
"Tem que jogar do nosso lado", pressionou coordenador
Na sequência, o servidor do DSEI, Juanahu, indagou sobre os gastos com combustíveis para atendimento nas aldeias. O karajá esclareceu: "Não estou acusando o senhor em nenhum momento, eu estou falando do distrito, DSEI, sem nome, já teve corrupção [no passado]". Ele lembrou a Barros que o coordenador o havia ameaçado de demissão. "Você falou para mim uma coisa, você vai me mandar embora, [pedir] a minha cabeça. Eu sou um conselheiro, então você vai mandar embora todos os conselheiros", disse Juanahu.
Barros retrucou que "você só joga contra nós, cara". "Você tem que escolher, você quer ser liderança, falar merda, ou você quer trabalhar pra gente? Você pode ser liderança e continuar falando a merda que cê quiser, mas você não pode jogar contra o DSEI, pô. Você é funcionário do DSEI, cara", disse o militar reformado da Marinha.
O servidor karajá explicou que a maioria dos conselheiros do Condisi é formada por funcionários da Sesai. "Agora você esclareceu para mim. Ninguém vai falar nada", disse Juanahu. "Quando você trabalha para nós você tem que jogar do nosso lado", respondeu o militar.
Juanahu lembrou a Barros que sua mãe karajá, de 57 anos, morrera por falta de transporte, sem combustível.
A gravação gerou forte reação entre indígenas em grupos de discussão. O vereador Reginaldo Tapirapé (PP), de Confresa (MT), disse em áudio que o diálogo foi "bastante agressivo, bastante destruidor e preconceituoso". Ele disse que conhecia Juanahu "há muitos anos", é "um companheiro de luta, é trabalhador na saúde indígena", que "tem feito um papel importante nesse processo de [combate a] endemia".
Uma indígena afirmou em áudio que "foi muito difícil quando a gente ouviu o áudio". "É um absurdo tudo que a gente ouviu, o tom da voz, tudo. É muito preocupante. Nós conselheiros não podemos abrir a boca para falar nada, parece que tem uma ditadura. [...] Toda essa retaliação com Juanahu foi porque ele respondeu o que o Luma tava falando aqui e ele deu a opinião dele e aconteceu tudo isso, essas humilhações, abuso de poder. [...] É muito triste, nós temos mesmo que tomar uma atitude."
Fala tem "cunho racista, agressivo e preconceituoso", diz associação
A conselheira do Condisi do Araguaia Eliana Karajá disse que se sentiu "ofendida e discriminada" pela fala de Barros.
"Ele não sabe da vida de todo mundo, ele não sabe o que ele está falando. Depois da pandemia, todo mundo parou, agora que está retomando devagar. Ele conheceu meu povo em plena pandemia, não pode julgar pelo alto, falando isso. Então podemos julgar o trabalho dele. O que ele fez para melhorar essa situação? Se você julgar uma pessoa, você tem que se julgar primeiro. Nós não fazemos agronegócio, fazer plantação com soja, isso ele não vai ver, não é de nossa índole. O Rio Formoso aqui está praticamente morto. É um absurdo. Ele não atingiu só um indígena, ele pegou todo mundo, ele falou sobre os povos indígenas. Ele fala que nós não produzimos. Ele produz alguma coisa?"
Apesar de Barros alegar, na gravação, que também é indígena "mestiço" e falar em "nosso povo", as lideranças indígenas da região disseram desconhecer qualquer laço familiar dele com indígenas do Araguaia. Ele não era conhecido pelos indígenas da região antes de ser nomeado, em janeiro de 2020.
Em nota de repúdio, a Asiva (Associação Indígena do Vale do Araguaia) e o Coletivo de Mulheres Iny afirmaram que o áudio tem "cunho racista, agressivo e preconceituoso contra os povos indígenas e o profissional indígena que atua no distrito Araguaia".
"Lutaremos para que estes atos não ecoam de forma a que não encontrem respaldo. Solicitamos o apoio dos povos indígenas do Brasil e defensores da causa indígena, ao Ministério Público para investigação e providências. O áudio foi gravado pelo profissional e conselheiro distrital de saúde indígena. Os relatos dos nossos parentes e que não é a primeira vez que o coordenador usa sua autoridade para humilha os funcionários indígenas", diz a nota.
O presidente do Condisi Araguaia, Cleidson Ima'arawy Tapirapé, e o vice-presidente da entidade, Rodrigo Vasconcelos da Costa, enviaram um ofício nesta quarta-feira (24) ao secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, para "solicitar providências urgentes para resolução do fato ocorrido".
O ofício diz que o coordenador "acabou envolvendo todos os indígenas, relatando que o povo indígena não trabalha, não produz e vive de merrecas vindas do Governo. Falou ainda que o profissional que é prestador de serviços deve jogar do lado do DSEI, deixando a entender por parte da grande maioria de nossas lideranças que os conselheiros que atuam [em] alguma atividade dentro do DSEI não podem exercer o papel de fiscal".
Secretaria vê "tentativa de desmoralizar o coordenador"
Em nota enviada à coluna, a Sesai do Ministério da Saúde saiu em defesa de Rolande Barros, ao dizer que ele trabalha "com qualidade técnica" e que seria alvo de "tentativa de desmoralização". A coluna também indagou qual a experiência de Barros com populações indígenas antes de sua nomeação, em janeiro de 2020. Indagou também sobre a formação educacional de Barros. Não houve resposta às duas perguntas.
A Sesai afirmou em nota, na íntegra:
"A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) informa que o Coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Araguaia, Ronalde de Barros Ramos, vem exercendo a coordenação do distrito com qualidade técnica de modo a manter a assistência de saúde dos indígenas da região, com apoio dos profissionais do DSEI e do controle social.
"Conforme explicações dadas pelo coordenador, as palavras proferidas não se referem à população indígena atendida pelo distrito, mas sim a uma situação pontual envolvendo um indígena e outros colaboradores que trabalham no distrito e, há tempos, não vêm desempenhando suas atividades a contento sendo que, quando cobrados, acabam não corrigindo as falhas identificadas.
"A parte da conversa que foi gravada não apresenta a totalidade do diálogo, omitindo parte importante da conversa já em andamento. A gravação, feita sem conhecimento do coordenador, possibilitou que o contexto da conversa fosse colocado de acordo com os interesses do profissional, numa clara tentativa de desmoralizar o coordenador.
"O Distrito informa que trabalha em harmonia com o controle social, composto por conselheiros, e que o Conselho Distrital está acompanhando a apuração dos fatos."
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