Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Inquérito que ameaça Bolsonaro é uma tese sob análise
A notícia teve grande repercussão na semana passada: pela primeira vez desde que Jair Bolsonaro tomou posse na Presidência, um relatório da Polícia Federal concluiu que ele cometeu um crime, um vazamento de informação, que prevê de seis meses a dois anos de detenção. A delegada da PF responsável pelo inquérito só não formalizou o indiciamento porque entendeu que precisava de autorização prévia do STF (Supremo Tribunal Federal).
Para avançar e chegar a uma punição de Bolsonaro, a tese desenvolvida pela PF ainda precisa ser corroborada por Augusto Aras, o procurador-geral da República nomeado duas vezes por Bolsonaro e que por várias vezes evitou ações mais enérgicas contra o presidente e seu governo, e pela maioria dos ministros do STF.
A conclusão policial tem um ponto central que a PGR e o STF precisarão enfrentar. Ao divulgar durante uma live em agosto de 2021 um inquérito aberto pela mesma PF em 2018, Bolsonaro tinha o interesse incendiário e irresponsável - esse ponto não se discute - de colocar em dúvida as urnas eletrônicas, ou seja, em última análise, sabotar o processo democrático. Mas a afirmação da PF de que um deputado federal (Filipe Barros, do PSL do Paraná) e um presidente da República deveriam guardar sigilo sobre um inquérito sobre o qual a própria PF reconheceu não haver uma chancela de sigilo ainda deverá ser objeto de muito debate.
Documento entregue ao STF no último dia 3 mostra que o chefe do Setor de Inteligência Policial da Superintendência da PF no Distrito Federal, Daniel Carvalho Brasil Nascimento, investigou o motivo pelo qual o delegado da PF Victor Neves Feitosa Campos aceitou liberar para Barros uma cópia do inquérito de 2018. O deputado depois a compartilhou com auxiliares de Bolsonaro, que a divulgou em sua rede social.
A apuração interna da PF ocorreu por meio de uma Sindicância Administrativa aberta em setembro de 2021 a fim de apurar se houve alguma falta funcional do delegado Campos. A conclusão foi que a sua conduta "não alcança tipicidade administrativa" e que "não há, salvo melhor juízo, alcance da conduta em tipo infracional de ordem administrativa". "Razão pela qual" o delegado Nascimento decidiu pelo arquivamento da sindicância. Ou seja, para a PF, Campos não errou ao permitir acesso ao inquérito que tramitava desde 2018 na Superintendência do DF.
A partir dessa conclusão - aliás também acolhida no inquérito sobre Bolsonaro, já que a PF não sugeriu o indiciamento de Campos -, muitas dúvidas deverão fustigar PGR e STF sobre um caso que é único, sem precedente na PF, segundo investigadores consultados pela coluna.
A primeira é mais geral. Sem entrar no mérito do conteúdo dos documentos, caberá decidir se um parlamentar eleito tem ou não o direito de levar a público dados repassados formalmente pela PF. A segunda: ainda que fique estabelecido que um deputado não possa fazer isso, é difícil saber como poderá ser interpretado o papel de Bolsonaro, já que o inquérito foi repassado a Barros, e não ao presidente.
A delegada responsável pelo inquérito, Denisse Dias Rosa Ribeiro, escreveu no seu relatório de novembro de 2021 que os elementos colhidos ao longo da apuração "apontam também para a atuação, voluntária e consciente" de Barros e Bolsonaro "na prática do crime previsto no artigo 325, parágrafo 2º, combinado com o artigo 327, parágrafo 2º, do Código Penal brasileiro".
O artigo 325 do Código Penal diz que é crime "revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação". Duas menções relevantes, é preciso ter ciência "em razão do cargo" e o dado deveria "permanecer em segredo".
A PGR deverá opinar se os cargos de deputado e presidente, que não incluem conduzir inquéritos policiais, estariam sujeitos a essa proibição. Sobre o segredo, o delegado Campos (absolvido pela PF) havia autorizado a cópia. E o relatório final da sindicância da PF concluiu que o inquérito "não restava abarcado por decisão judicial de sigilo", embora tenha plantado uma dúvida na sequência da frase, ao dizer que há "sigilo relativo" sobre o mesmo inquérito. Voltarei depois a esse ponto.
A ausência de "decisão judicial de sigilo" sobre o inquérito, fato reconhecido pela sindicância, é que levou o advogado-geral da União, Bruno Bianco Leal, a afirmar em uma petição ao STF, em defesa de Bolsonaro, que "se está diante de um crime impossível" diante da "absoluta impropriedade do objeto (documento público), vale dizer, a ausência de cláusula de sigilo do inquérito, somada à expressa autorização da PF para o seu manuseio em seara de amplo alcance social (Câmara dos Deputados), o que automaticamente repercute em esvaziamento de qualquer debate direcionado sobre existência de crime, visto que não há falar em consumação".
O "crime impossível", escreveu Leal, está previsto no artigo 17 do Código Penal, segundo o qual "não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime".
A delegada tratou da aparente contradição sobre ela reconhecer que o delegado Campos não teve culpa e, ao mesmo tempo, apontar o crime de divulgação de informação sigilosa por Barros e Bolsonaro. Segundo um outro relatório da delegada, de 31 de janeiro último, o acesso ao inquérito foi franqueado a Barros apenas para "subsidiar as discussões relativas à PEC 135/2019" no Congresso Nacional. Assim, para ela, o deputado cometeu um "desvio de finalidade" ao usar o inquérito na live presidencial.
A delegada escreveu ainda, em um argumento fundamental, que "o inquérito policial, ao contrário do processo judicial, possui como regra o sigilo". Para embasar essa afirmação, a delegada citou "doutrina majoritária, posicionamento dos tribunais (inclusive Súmula 14 do STF) e diante do artigo 20 do Código de Processo Penal".
A Súmula 14 não trata exatamente do uso do sigilo em inquéritos, mas sim do "direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".
O artigo 20 do CPP diz que a "autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade". Porém, sobre isso a sindicância da PF concluiu que "não havia medida cautelar sigilosa em andamento", embora faça a ressalva - na mesma linha do que disse a delegada - que o inquérito "apresentava o sigilo relativo próprio dos procedimentos de investigação criminal".
A sindicância e a delegada estão dizendo que todo inquérito tem um "sigilo relativo próprio". A dúvida imediata é saber então por que o delegado Campos forneceu a cópia (e foi inocentado pela PF).
A delegada Ribeiro levantou uma importante contradição da AGU. Ao questionar a divulgação da data limite para a realização do depoimento do presidente, a AGU pediu para reforçar "o status de sigilo" do inquérito e afirmou que "a publicidade ostensiva [do inquérito] é incompatível com o art. 20 do CPP".
Não é o que a AGU diz agora na tentativa de desmontar as conclusões da PF. Numa petição de 28 de janeiro, o advogado-geral da União analisou o depoimento do delegado Campos e escreveu que é possível concluir que "não havia cadastramento de sigilo que impedisse a divulgação da peça informativa; não havia decreto de segredo de justiça; não havia diligências em curso; não se identificaram prejuízos ao curso das investigações em virtude da publicidade conferida; a aposição do sigilo é superveniente à data de 04/08/2021, momento em que foi realizada a live presidencial".
Ainda que seja reconhecido que Barros "se desviou" do pedido feito ao delegado Campos, o que é uma parte importante da tese apresentada pela polícia no inquérito, o problema continuará em relação à possível responsabilidade de Bolsonaro. Ele sempre poderá alegar que nada sabia sobre as justificativas apresentadas por Barros à PF a respeito do uso do material.
Para demonstrar o quão complicado será para PGR e STF enfrentarem a narrativa policial, vamos embaralhar os papéis. Digamos que um parlamentar da oposição solicita a cópia de um inquérito a um delegado da PF. Após analisar os autos, o delegado conclui que não há sigilo e autoriza uma cópia ao deputado. Empolgado com as conclusões da apuração, que miram o presidente da República, o deputado leva tudo ao conhecimento do presidente do seu partido de oposição. Os políticos então divulgam o inquérito em suas redes sociais.
O deputado oposicionista e o presidente do seu partido terão cometido um crime? Deverão ser indiciados, presos e encarcerados por até dois anos, mesmo tendo revelado dados sobre um presidente da República, ou seja, um assunto de interesse público? E a própria PF, a quem cabia proteger os dados, não havia afirmado que o procedimento não era sigiloso?
Estendendo o raciocínio, se todo inquérito liberado pela polícia a um parlamentar no Congresso seguir sob "sigilo relativo", a segurança jurídica da oposição na hora de denunciar atos do Executivo entrará em xeque. O parlamentar corre o risco de ser denunciado e preso. Preocupações desse tipo poderão estar na cabeça dos ministros do STF quando analisarem o inquérito 4878 - não se sabe quando nem como, pois a bola agora está com a PGR.
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