Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O Brasil fake na 'Mensagem' enviada por Bolsonaro ao Congresso
A "Mensagem Presidencial" de 2022 encaminhada por Jair Bolsonaro nesta quarta-feira (2) ao Congresso Nacional na reabertura dos trabalhos do Legislativo apresenta um Brasil de sucesso, tolerante, pujante e moderno, preocupado com o meio ambiente e os direitos humanos. São 250 páginas pontuadas de exageros, omissões, afirmações distorcidas e mesmo mentirosas. Juntas, desenham um país que não existe - ou que só existe no papel.
O envio da "Mensagem" uma vez por ano no início dos trabalhos legislativos, o que ocorre normalmente em fevereiro, é uma atribuição privativa do presidente da República prevista na Constituição (artigo 83). Seu objetivo é "expor a situação do país e solicitar as providências que [o presidente] julgar necessárias".
O documento é produzido a partir de contribuições enviadas meses antes pelos ministérios, autarquias, fundações e empresas do governo. Cada setor envia sua colaboração, que é cobrada, reunida, editada e formatada num texto único pela Presidência.
No papel, um amante da Ciência
A "Mensagem" de Bolsonaro descreve um país impressionante. O texto diz, por exemplo, que o governo deu "um sinal inequívoco" do seu "compromisso com o combate a todas as formas de racismo, intolerância e xenofobia, incluindo o antissemitismo".
Em todo o documento, a palavra negro inexiste. Assim como menção à Fundação Palmares, antes de Bolsonaro uma referência nas políticas públicas contra o racismo e responsável por emitir certidões às comunidades quilombolas, um passo importante no processo de demarcação dos territórios. Sob Bolsonaro, no entanto, as demarcações de territórios quilombolas desabaram e o presidente da Fundação seguidas vezes investiu contra o movimento negro e personalidades históricas negras.
Na "Mensagem", o governo Bolsonaro é retratado como um verdadeiro amante da ciência. "O Governo Federal tem continuado os esforços de inserção do País na sociedade do conhecimento, onde o avanço na produção de ciência de boa qualidade, o desenvolvimento de grandes projetos de infraestrutura de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) e iniciativas de divulgação científica devem prosperar de forma articulada."
Na dura realidade, o governo cortou 87% da verba para Ciência e Tecnologia em 2021, derrubando-a de R$ 690 milhões para R$ 89 milhões. No primeiro trimestre de 2021, mais de 200 cientistas assinaram uma carta aberta contra o governo Bolsonaro. Em novembro, 21 cientistas recusaram, em sinal de protesto, uma comenda oferecida pelo governo. Sem contar a campanha pelo uso de medicamerntos sem eficácia contra a Covid-19 e a pregação contra a vacina para crianças, desrespeitando todos os cientistas e especialistas sérios no assunto.
Ao falar dos esforços para vacinação dos brasileiros, a "Mensagem" usa o truque de fazer o recorte de uma parcela da população, como se bebês e crianças também não estejam sendo acometidos e mortos pela Covid-19. Diz que finalizou o ano de 2021 "com mais de 81% do público maior de 12 anos de idade completamente imunizado". O dado, porém, não inclui a dose de reforço nem a população abaixo dos 12 anos. Na verdade, em 3 de fevereiro último 70,1% da população como um todo estava com o primeiro ciclo vacinal completo e apenas 22,8% com a dose de reforço.
Governadores e prefeitos são excluídos
Quando trata de resultados positivos no combate à pandemia, a "Mensagem" omite o papel de governadores e prefeitos, os quais são responsáveis por grande parte da estrutura de atendimento do SUS (Sistema Único de Saúde) nos Estados e municípios. "Os resultados positivos no combate à Covid-19 são produtos do esforço dos profissionais que integram o SUS e do papel coordenador exercido pelo Governo Federal", diz o texto.
No campo dos direitos humanos, a "Mensagem" afirma: "O foco do Poder Executivo na promoção e defesa dos direitos humanos permanece sendo para todos, sem deixar ninguém para trás, de maneira universal e não segmentada, considerando a perspectiva de integralidade da pessoa e de valorização da família".
Em seu relatório anual sobre 2021, a organização não governamental de direitos humanos HRW (Human Rights Watch) associou "ameaças a direitos políticos e civis" protagonizadas por Bolsonaro aos antigos e persistentes problemas do país como violência policial, cárceres insalubres, racismo, LGBTfobia, devastação ambiental e vulnerabilidade de ativistas. Citando dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o relatório lembra que 6.400 mortes foram provocadas por policiais, das quais 80% de pessoas negras. Isso representou 12,8% das mortes violentas intencionais no país, muito superior ao registrado no mesmo período em países como EUA (4,7%) e África do Sul (1,7%).
Governo cita '300' barreiras sanitárias; indígenas apontam 3
Sobre os povos indígenas, Amazônia e preservação ambiental, o relatório contém delírios. Afirma que, "com o intuito de proteger a população indígena, o Governo tem atuado na elaboração de Planos de Barreiras Sanitárias para povos indígenas isolados e de recente contato" e que "foram investidos recursos para a implementação e o suporte a aproximadamente 300 barreiras e postos de controle de acesso em todo o território nacional, a fim de impedir a entrada de não indígenas nas aldeias. Tais ações devem ser ampliadas em 2022".
Na realidade, a necessidade de criação de barreiras sanitárias foi uma pauta toda apresentada e formulada pelas organizações representativas dos indígenas que reagiram à inação do governo nos primeiros meses da pandemia. A iniciativa ganhou corpo no decorrer de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) ajuizada pelas organizações em 2020 no STF (Supremo Tribunal Federal), em processo sob a relatoria do ministro Luís Barroso. Desde então, houve reiteradas cobranças dos indígenas para que o governo de fato instale e coloque em funcionamento tais barreiras.
A situação é acompanhada de perto pela principal organização indígena, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que lançou um site como parte da campanha "Emergência Indígena". O processo de instalação de cada barreira é analisado separadamente, com mapa e comentários. De acordo com o levantamento, até o momento há apenas três barreiras instaladas, oito incompletas e 31 não instaladas.
O texto da "Mensagem" soma as barreiras a supostos "postos de controle de acesso". As unidades que mais parecem com o que o governo diz são as bases de proteção etnoambiental. Elas são apenas 29 no país, porém três estão desativadas, uma em processo de ativação e duas com uso intermitente. Tudo somado - barreiras mais bases -, muito abaixo do número de 300.
'É mais uma falácia do governo'
Beto Marubo, liderança da Univaja (União dos Povos Indígenas da Terra do Vale do Javari), no Amazonas, disse à coluna que "não há nenhum compromisso do governo Bolsonaro em proteger os povos indígenas". "Nós acreditamos que essa ['Mensagem'] é mais uma falácia do governo, é muito mais uma retórica do governo do que o compromisso de proteger os parentes de fato", disse Marubo.
"Nem as barreiras que nós sugerimos foram acatadas pelo governo, até hoje faz que não tem visto nossas proposições, que dirá 300 como ele está falando ali. Na prática não existe isso, nunca existiu isso nem vai existir. Um ano para fazer isso e não foi levado em consideração, que dirá agora no final do governo. É uma retórica política."
A "Mensagem" de Bolsonaro diz ainda que o governo "criou uma Central de Atendimento, permitindo que as demandas da população indígena chegassem mais rápido aos órgãos competentes. Também foi instituída a Sala de Situação Nacional, no âmbito do Ministério da Saúde, que, em articulação com outros órgãos, é responsável pelo monitoramento e acompanhamento da situação dos povos indígenas frente à pandemia".
O documento também não explica que a "sala" só foi criada a partir das pressões da ADPF ajuizada no STF. Bato Marubo, que no começo chegou a participar de algumas reuniões, disse que hoje ela não tem eficácia nenhuma para resolver as demandas indígenas.
"Na prática, a 'Sala de Situação' em nenhum momento teve ou tem o compromisso de ouvir os povos indígenas. Não por acaso, hoje não passa de uma reunião com os advogados que nos representam lá e os técnicos do governo. Porque em nenhum momento foi levada em consideração a maior parte das nossas sugestões, inclusive sobre as barreiras sanitárias, não foram acatadas pelo governo e isso vem se protelando por mais de ano."
Silêncio sobre a explosão do desmatamento
A respeito de desmatamento e incêndios no país, a "Mensagem" diz que são "pautas prioritárias do Governo Federal" e que "dobrou os recursos para os órgãos de fiscalização ambiental, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), totalizando cerca de meio bilhão de reais especificamente para ações de comando e controle".
Os dados colhidos por satélites e revisados por técnicos de diversas instituições, porém, indicam a explosão do desmatamento na Amazônia, que atinge níveis alarmantes e um crescimento de 56% durante o governo Bolsonaro. Sobre o Orçamento, um recente relatório da coalizão Observatório do Clima apontou que o Ibama liquidou apenas 41% do valor destinado à fiscalização em 2021 - de R$ 219 milhões, usou somente R$ 88 milhões.
A "Mensagem" afirma, sobre os incêndios, que "nos meses mais críticos do ano, o número de focos de calor ficou abaixo da média histórica" e que os dados "demonstram uma redução no número de queimadas e incêndios no Brasil, tanto na comparação com 2020 quanto na série histórica de 1998 a 2021".
Ane Alencar, diretora de Ciência do IPAM Amazônia e uma das principais especialistas em queimadas no país, indagada pela coluna sobre essas afirmações, disse que "os dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram que os focos de calor foram menores em 2021, mas não foi o menor valor desde 1998" e também "não foi o mais baixo da série, se considerarmos somente de julho a outubro" - já que a "Mensagem" fala em "meses mais críticos".
Na comparação com 2021, houve menos registros de focos de calor em 2018, 2013, 2011, 2001, 2000, 1999 e 1998. No período de julho a outubro, houve menos focos de calor em 2018, 2016, 2014, 2013, 2011, 2009, 2001, 2000, 1999 e 1998.
Ane Alencar explicou que a redução de incêndios em 2021 está muito mais relacionada a questões climáticas do que a uma ação de governo, daí não fazer sentido o governo se vangloriar da queda. "É difícil atribuir isso ao governo, considerando a taxa tão alarmante de desmatamento. O fogo não anda sozinho nem separado do desmatamento. As pessoas não tocaram fogo porque não tinha clima para isso. A redução foi decorrente do clima. Se a redução dos focos de calor fosse decorrente de uma ação governamental, o desmatamento também teria reduzido. Se houvesse mais transparência nas ações, dizendo, por exemplo, onde atuaram, quais foram as multas aplicadas, a gente conseguiria afirmar que de fato foi uma ação do governo. O que vemos é que não foi bem assim."
'Está mais preocupado com reeleição', diz deputada da oposição
Outras palavras inexistentes na "Mensagem" são jornalistas, jornalismo, imprensa (apenas quando vinculada a imprensa oficial ou Imprensa Nacional), liberdade de expressão e entrevistas. Quando fala em comunicação, trata apenas da oficial praticada pelo governo. Não à toa, a "Mensagem" nada explica sobre Bolsonaro ter atacado a imprensa em 86% das 46 lives que transmitiu pela internet ao longo de 2021. Referências à produção de arte, ao trabalho de artistas, ao cinema, à música e ao teatro também não existem na "Mensagem".
Diferentemente de uma live na internet ou declarações para o "cercadinho", a "Mensagem" tem um peso institucional maior, pois é uma informação oficial prestada diretamente por um presidente da República a um Poder que também exerce o papel de fiscalização e controle, o Congresso Nacional. Deveria haver punição à autoridade que prestasse informação falsa ou distorcida num documento do gênero?
Para a deputada federal Sâmia Bomfim (SP), líder da bancada do PSOL na Câmara, é "muito improvável" que Bolsonaro, que "até hoje já cometeu uma serie de irregularidades e crimes", vá sofrer "algum tipo de sanção" num ano eleitoral por conta da "Mensagem".
"Há mecanismos que poderiam, sim, ser acionados, a própria Procuradoria-Geral da República poderia instá-lo a dar explicações, ele poderia ser convocado a comparecer na Câmara para dar esclarecimentos sobre eventuais mentiras. Num ano em que a situação econômica do país é tão frágil e dramática, ele deveria na 'Mensagem' era apontar algumas saídas, por exemplo, como vai fazer a articulação política, o problema orçamentário, responder ao problema da fome. Mas ele está mais preocupado com a própria reeleição do que em resolver os problemas do país e tirá-lo do atoleiro."
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