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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Nunes Marques põe em banho-maria uma 'ação-teste' da Defensoria Pública

16.dez.21 - Os ministros do STF Kassio Nunes Marques e André Mendonça, indicados pelo presidente Jair Bolsonaro - Fellipe Sampaio/SCO/STF
16.dez.21 - Os ministros do STF Kassio Nunes Marques e André Mendonça, indicados pelo presidente Jair Bolsonaro Imagem: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Colunista do UOL

15/02/2022 04h00Atualizada em 16/02/2022 20h41

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Kassio Nunes Marques tem deixado em banho-maria, há quase cinco meses, uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) ajuizada pela DPU (Defensoria Pública da União) em benefício de imigrantes que buscam trabalhar como vigilantes no Brasil. O ministro foi sorteado relator da ADPF e recebeu o processo em 28 de setembro passado. O caso ficou "concluso ao relator", ou seja, aguarda um despacho.

Desde então, contudo, não houve movimentação processual até as 19h desta segunda-feira (14). (Atualização às 20h40 de 16/02/2022: um dia depois de estar coluna ter sido publicada, o ministro Nunes Marques decidiu rejeitar a ADPF em questão.

A situação da ADPF 886 contrasta com a de outras nove ações do mesmo gênero ajuizadas por diferentes órgãos e entidades desde setembro de 2021 e relatadas pelo mesmo ministro. Ele é relator das ADPFs de números 938, 934, 933, 924, 921, 908, 906, 899 e 887. Na maioria desses casos, o ministro já solicitou informações da AGU (Advocacia Geral da União) e da PGR (Procuradoria Geral da República), procedimentos normais quando uma ADPF entra no tribunal. Em outros casos, ele rejeitou a ADPF - de qualquer forma, despachou nos autos.

Procurado pela coluna na manhã desta segunda-feira (14) por meio da assessoria de imprensa do STF, Marques não enviou comentários até o fechamento deste texto. Caso o ministro se manifeste, o texto será atualizado.

O ajuizamento das ADPFs por partidos políticos de oposição e organizações não governamentais junto ao STF ganhou uma enorme força durante o governo de Jair Bolsonaro como uma ferramenta para denúncia e discussão de políticas públicas, leis, decretos, programas, projetos e outros atos da União. Esse tipo de ação é usado para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Executivo.

Durante os três anos de governo Bolsonaro, foi ajuizado um total de 382 ADPFs no Supremo. A primeira ADPF registrada no STF é de janeiro de 2000 e a última tem o número 943 do último dia 10. Isto é, nos 19 anos anteriores à posse de Bolsonaro, foram ajuizadas ao todo 561 ADPFs. E apenas nos três anos sob Bolsonaro, 382 (ou 40% do total).

DPU pede reconhecimento de "legitimidade ativa" do órgão

O aumento das ADPFs está relacionado à noção de que a PGR (Procuradoria Geral da República), na figura do procurador-geral nomeado duas vezes por Bolsonaro, Augusto Aras, demora a agir ou não age para tolher ou pedir investigações sobre irregularidades e mesmo crimes atribuídos a várias esferas e autoridades do governo. Como reflexo, partidos políticos e ONGs têm recorrido ao STF para que o governo seja forçado a tomar as medidas necessárias para, por exemplo, proteger populações indígenas durante a pandemia do coronavírus.

Nesse contexto, a DPU começou a manifestar interesse em também ter sua legitimidade reconhecida para ajuizar ADPFs perante o STF em defesa de grupos populacionais pobres e vulneráveis, que são o público mais atendido pelos defensores públicos e também o mais exposto às consequências da pandemia.

A DPU não é listada textualmente no artigo 103 da Constituição entre as nove autoridades ou entidades que podem ajuizar uma ADPF no STF, mas tem sido aceita a participar desse tipo de ação na condição de "amicus curiae", ou seja, pode fornecer subsídios para a decisão do tribunal. A lista dos aptos cresceu ao longo do tempo no tribunal, que passou a acolher casos não previstos textualmente na Carta. Por isso, a ADPF 886 agora relatada pelo ministro Marques no STF é considerada uma "ação-teste" da DPU. A depender da decisão, que a DPU espera ser tomada pelo plenário no tribunal, novas ADPFs deverão ser ajuizadas pela Defensoria.

Movimentação processual da ADPF 886 na noite de segunda-feira (14); processo aguarda despacho do ministro do STF Nunes Marques - Reprodução - Reprodução
Movimentação processual da ADPF 886 na noite de segunda-feira (14); processo aguarda despacho do ministro do STF Nunes Marques
Imagem: Reprodução

Na ADPF nº 886, a DPU, por meio da AASTF (Assessoria de Atuação no STF), pede que o tribunal reconheça "a legitimidade ativa" do órgão para a propositura de ADPFs a partir da "ampliação do conceito de entidade de classe" já promovida pelo Supremo em outros casos. Na ADPF 742, por exemplo, o plenário do Supremo admitiu a legitimidade da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas". Na ADPF 709, o STF admitiu a legitimidade ativa da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

"A Defensoria Pública, embora constitua órgão de Estado, tem por missão institucional a defesa dos direitos fundamentais que vem pautando a nova orientação dessa Suprema Corte. O recorte dessa defesa de direitos envolve os necessitados. Por outro lado, se o novo caminho trilhado por essa Suprema Corte almeja assegurar que os grupos socialmente vulneráveis possam defender os próprios direitos e interesses, nada mais lógico que o órgão de Estado que tem por atribuição precípua a defesa de grupos socialmente vulneráveis possa também ostentar legitimidade", diz a petição subscrita pelos defensores públicos federais Gustavo Zortéa da Silva, Gustavo de Almeida Ribeiro, Bruno Vinícius Batista Arruda, Antônio Ezequiel Inácio Barbosa, Rômulo Coelho da Silva, Esdras dos Santos Carvalho, João Alberto Simões Pires Franco e Daniel de Macedo Alves Pereira.

Lei do final da ditadura prejudica imigrantes, aponta DPU

Na ADPF, os defensores públicos federais pedem que o STF conceda uma liminar a fim de suspender a eficácia do inciso I do artigo 16 da lei 7.102, assinada em 1983 pelo último presidente da ditadura militar (1964-1985), o general João Figueiredo (1918-1999). O inciso exige a nacionalidade brasileira para o exercício da profissão de vigilante.

A DPU também pede que não seja mais exigida a quitação de obrigações eleitorais e militares dos imigrantes, outra previsão da mesma lei. Os defensores também solicitaram que a PGR e a AGU sejam ouvidas sobre o assunto.

Os defensores afirmaram na petição que "os imigrantes vêm sendo privados, de maneira inconstitucional, do exercício da profissão de vigilante" no país, situação ainda mais grave "em um contexto de retração da atividade econômica em razão da pandemia de coronavírus, o que tende a amplificar os índices de desemprego".

A DPU mencionou a pesquisa "Caminhos para o refúgio - Inserção produtiva e social de refugiados no Brasil", que ouviu 386 profissionais de recursos humanos da região metropolitana de São Paulo. Os defensores ressaltaram que 91,2% dos profissionais entrevistados "declararam não dominar os procedimentos para a contratação de profissionais refugiados e, portanto, desconheciam que os procedimentos são os mesmos" da contratação de um brasileiro; do total dos entrevistados, "63,2% declararam acreditar que os procedimentos são mais complexos para a contratação de refugiados; 47,8% mencionaram acreditar que seus colegas evitam a contratação de refugiados ou imigrantes por medo das auditorias do Ministério do Trabalho".