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Rubens Valente

REPORTAGEM

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Siron Franco: 'Nós estamos num pesadelo'

O artista plástico Siron Franco em seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO) - Sérgio Lima / UOL
O artista plástico Siron Franco em seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO) Imagem: Sérgio Lima / UOL

Colunista do UOL

21/03/2022 04h00

Resumo da notícia

  • Um dos principais artistas plásticos em atividade no país diz que "fome é a maior violência" porque dá "uma desesperança total"
  • Siron concedeu entrevista em seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO), no qual montou uma barraca e passou a viver durante a pandemia

Na segunda metade dos anos 50, uma família foi morta a machadadas dentro de casa no Bairro Popular, em Goiânia (GO) - o pai, a mãe e quatro crianças -, um crime que abalou a cidade. Um garoto vizinho, de nome Gessiron, que mais tarde ficaria nacionalmente conhecido como Siron Franco, amigo das crianças, resolveu entrar na casa para ver o que tinha acontecido. Depois diria que nunca mais se esqueceu do que viu. Em entrevistas ao longo da carreira, Siron reconheceu que as cenas, que durante muitos anos voltaram em forma de pesadelo, podem ter influenciado sua arte de alguma maneira.

Mais de 60 anos depois, o pintor e escultor Siron Franco, 74, um dos principais artistas plásticos em atividade no país, se diz perplexo com o Brasil atual. É tudo junto, a fome, a alta mortalidade da pandemia, o desemprego, a violência, a destruição do meio ambiente e o "desmonte da sociedade brasileira enquanto gentileza". Se pesadelos influenciaram sua arte, ele agora diz que vive dentro de um.

"Esse momento que o Brasil está passando eu me recuso a achar que é real. Nós estamos num pesadelo. Não existe. Como assim? Em tudo. Na cortesia do cidadão com o outro, por exemplo. Eu nunca vi. Para mim, eu ainda não acordei."

Quando a pandemia do coronavírus começou, em março de 2020, Siron se mudou para seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO), na região metropolitana de Goiânia. Passou longos períodos sem sair, respeitando o distanciamento social.

Ergueu uma barraca de camping dentro do ateliê e continuou a produzir, ao som de música clássica, assistido pelo gato Banguela e cercado de livros de arte e de obras acabadas e inacabadas - algumas, disse ele, retoca ou refaz completamente, às vezes mais de uma vez, ao longo de 10, 20, 30 anos, até considerar encerrada. Elas estão espalhadas às dezenas no seu ateliê, muitas viradas para a parede e de costas para o artista. É como ele prefere.

'É uma sociedade fadada à violência'

Em duas horas de entrevista, Siron mencionou três vezes o desemprego no país, que hoje atinge mais de 12 milhões de brasileiros, como "uma loucura" que ele não entende como é possível acontecer num país enorme como o Brasil. Mas a fome o impressiona ainda mais. "A maior violência é a fome. Essa é violenta porque essa tira toda a... Essa humilha o cara, entendeu como é? Deve dar uma desesperança total."

O artista disse que, a cada dois meses, adquire uma tonelada de frango para ser distribuída a famílias carentes de Goiás.

"A gente sempre está dizendo, 'pô, eu preciso comer menos'. O cara que escuta isso deve querer dar uma porrada na gente, porque as pessoas estão loucas para comer um pão, cara, e estamos dizendo que temos que comer menos. Essa contradição, na minha cabeça, eu sempre vi isso de uma maneira muito doida. O mundo vai ter que repensar na marra esse tipo de sociedade. Você não pode ter uma pessoa trabalhando para você para ganhar um salário mínimo, que seja três, que é nada. É uma sociedade que está fadada à violência."

Interior do ateliê do artista plástico Siron Franco em Aparecida de Goiânia (GO) - Rubens Valente / UOL - Rubens Valente / UOL
Interior do ateliê do artista plástico Siron Franco em Aparecida de Goiânia (GO)
Imagem: Rubens Valente / UOL

Siron não parou de produzir ao longo da pandemia. Em janeiro passado, inaugurou a exposição "Renascimento" na Casa das Rosas, na avenida Paulista, em São Paulo, em parceria com o MIS (Museu da Imagem e do Som). A instalação com 365 manequins suspensos com cabos de aço a seis metros do chão, como se estivessem levitando, é uma reflexão sobre as mais de seiscentas milhares de mortes provocadas pelo coronavírus no país.

"Eu não posso estar fazendo o cálculo de que 'agora está bom, está morrendo só um Boeing por dia no Brasil'. É um Boeing, compadre. Duzentos e oitenta pessoas, trezentas pessoas! É muito! Nós já nos acostumamos com isso. Então daqui a pouco vão dizer 'não, só vai desmatar 500 alqueires lá, tudo bem, entendeu?'. Não, tudo é muito para mim, quando se trata de violência."

'Não entendo como ainda não acabou', diz Siron sobre a Amazônia

Em 29 de novembro último, Siron fez uma projeção de imagens de sua autoria no Museu Nacional, em Brasília, em homenagem ao Dia Nacional da Onça Pintada. Ele concordou que a destruição do meio ambiente está aumentando, mas também lembrou que é assim desde sua infância. Disse que costumava perguntar ao seu pai sobre as notícias de destruição da natureza. Indagado se as coisas estão piorando, ele ofereceu "uma triste resposta".

"Desde que me entendo por gente, essa coisa acontece. Eu não entendo como é que ainda não acabou [a Amazônia]. É muito simples, pegue os jornais antigos, faz uma pesquisa, cara, não tem um ano que alguém não fala que alguém botou fogo na Amazônia. No Cerrado, a mesma coisa. Eu perguntava ao meu pai, ele dizia 'aqui é para colocar gado e é criminoso, porque matam os bichinhos que estão aí.' Piorou, porque se tem 70 anos que eu vejo isso, piorou. Agora, o mais louco é que sempre esteve muito ruim."

Siron Franco, artista plástico, em seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO) - Sérgio Lima / UOL - Sérgio Lima / UOL
Siron Franco, artista plástico, em seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO)
Imagem: Sérgio Lima / UOL

Filho de um casal de pequenos agricultores muito religiosos, Semírames ("minha mãe andava sobre as brasas nas noites de São João, do qual era devota") e Constâncio, Siron começou a pintar ainda adolescente. Por um tempo fez "madonas", a representação artística da Virgem Maria, a mãe de Jesus segundo o catolicismo, e retratos para a sociedade goiana mais endinheirada. Era uma necessidade também econômica, disse ele, pois conseguia juntar dinheiro para adquirir o material de pintura, aprimorar a técnica e buscar um caminho próprio. Mais tarde abordaria de novo o tema das "madonas", mas então pintando-as grávidas, vomitando, com dentes careados.

"Eu tinha um certo complexo porque eu não entrei numas de tipo 'eu vou passar fome e só fazer o que eu quero'. Passou muito tempo, eu descobri um documentário, sobre [pintor Piet] Mondrian, que me tirou 20 anos de análise. Ele fazia flores para vender quadros. Ele é um grande artista, e aquilo era bonito, mas não era o que ele queria. Porque o grande negócio que você está buscando, você, na verdade, não conhece. Quando eu busco uma tesoura, é fácil, eu sei que estou buscando uma tesoura. Mas eu quero fazer algo que eu não tenho a menor ideia [do que é]. Eu sei o que eu não quero. O que eu quero, não tenho ideia nenhuma."

'Hoje já pedi desculpa aos gorilas'

A fama do jovem retratista Siron atraiu até a atenção da mulher do general ditador e então presidente Costa e Silva (1899-1969), Yolanda (1907-1991), que convidou Siron a pintar um retrato seu. Levou cerca de um ano e foi devidamente remunerado, disse o artista. Siron disse que, ao mesmo tempo, ajudava, com desenhos gratuitos para folhetos mimeografados, jovens de esquerda empenhados na denúncia da ditadura militar. Mas disse que nunca teve envolvimento com a luta armada nem queria saber detalhes da esquerda obrigada a viver na clandestinidade.

"Uma vez eu disse a eles: 'Se um cara me mostrar um alicate, eu entrego todos vocês, então não me contem [nada]. Eu não quero saber. [risos] Eu vim aqui não é para ser guerrilheiro nem revolucionário, eu vim a esse planeta só para ser um pintor. Só isso, é isso o que eu quero. Ajudo vocês nisso, porque não concordo com nada disso [ditadura]'."

Siron disse que desenhou, para alguns desses panfletos, um gorila usando um quepe militar. Hoje ele se arrepende, mas não pelos militares, e sim pelos gorilas.

"O desenho na verdade era uma coisa absolutamente equivocada da minha parte e de todo mundo na época. A gente colocava um gorila - que é um animal absolutamente maravilhoso - com um boné. Hoje já pedi desculpa para os gorilas. Aquilo foi uma imbecilidade de um jovem. Quando você diz que uma pessoa é parecida com um bicho, seguramente, se você perguntar ao bicho, com certeza ele vai ficar puto, porque o pior bicho somos nós. Simples assim. A gente come tudo, a ave, o jacaré. A gente vai comendo tudo. Come a floresta, come as cabeças das gerações."

Monumento aos indígenas foi destruído a marretadas

No início dos anos 70, Siron mudou-se para São Paulo. Até 1975, com apenas 28 anos, ele já havia recebido alguns dos principais prêmios artísticos do país, como os da Bienal de São Paulo, em duas vezes.

A ligação de Siron com a temática ambiental ganhou vulto nos anos 80, quando fez uma série de pinturas e esculturas sobre o acidente radiológico do césio-137 na periferia de Goiânia.

"O tema do césio me pegou porque foi num bairro onde eu nasci, conheço desde menino. Mesmo assim, no começo, eu não tinha ideia [de transformar em arte]. Eu estava a fim de fazer uma passeata, começou perto de onde eu trabalhava. Aí a televisão italiana Rai Uno mandou um cara para cá, um cinegrafista, que ficou três meses me documentando. Eu fazia aquilo para ser uma ilustração para uma revista europeia. [Depois], quando eu vi todos aqueles desenhos, eu percebi que estava fazendo uma narrativa com desenho, uma reportagem visual, digamos assim."

Nos anos 70, com o dinheiro recebido numa premiação, Siron pôde visitar, no Museu do Homem em Paris, a exposição de uma série de objetos confeccionados por indígenas brasileiros Karajá. Ele disse ter ficado "fascinado e enlouquecido" com as peças. Já conhecia a arte Karajá, mas no museu havia "um repertório muito maior". Passou a pesquisar várias peças indígenas e matutar a ideia de fazer algo a respeito. Até que, na mesma época da Eco-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992, resolveu tirar do papel a ideia de uma grande homenagem aos povos indígenas na forma de um monumento.

Siron procurou uma família tradicional de Goiânia, os Bueno, e trocou um terreno em Aparecida de Goiânia por diversos - e já valiosos - quadros de sua autoria. Depois pediu apoio a um grupo de empresários para arrecadar recursos e injetou milhares de dólares do próprio bolso para concluir a obra. Diversos líderes e aldeias indígenas colaboraram.

O monumento foi inaugurado em 1992 com 492 colunas de cimento, cada uma incluindo cópias, feitas a partir de moldes em silicone, de objetos indígenas, alguns com centenas ou milhares de anos, segundo Siron, que foram cedidos por caciques para a cópia. As colunas foram distribuídas no terreno de forma a compor o mapa do Brasil. Depois, no ano 2000, foram inauguradas mais oito colunas, perfazendo 500 colunas, uma para cada ano desde a chegada dos portugueses à costa brasileira, em 1500.

A tragédia é que tudo foi repetidamente dilapidado, degradado e por fim aniquilado ao longo dos anos. As colunas foram derrubadas a marretadas e o local está hoje abandonado e tomado pelo mato. Os objetos de referência indígena foram roubados e desviados. Siron conseguiu salvar alguns. Ele chegou a comprar 20 mil metros de arame farpado e cercou o local, mas foi inútil, a proteção foi rompida. O artista enxerga até ódio de fundo religioso na depredação.

Nos anos 2000, as colunas que formavam o Monumento às Nações Indígenas, em Aparecida de Goiânia (GO), de Siron Franco, foram destruídas e derrubadas por vândalos - Álbum pessoal/Siron Franco - Álbum pessoal/Siron Franco
Nos anos 2000, as colunas que formavam o Monumento às Nações Indígenas, em Aparecida de Goiânia (GO), do artista plástico Siron Franco, foram destruídas e derrubadas por vândalos
Imagem: Álbum pessoal/Siron Franco

"Há uma turma de pessoas, ali, para as quais qualquer ato de contemplação é um ato de adoração e portanto não pode existir. Só que essa coisa retardada e ignorante é perigosa. Se você agride um objeto, depois vai agredir uma pessoa. Primeiro só roubavam, depois derrubaram a marretadas."

O artista disse que está determinado a refazer e reinaugurar todo o monumento. Ele disse que conseguiu refazer as 500 colunas de concreto, hoje guardadas na pedreira de um amigo, e busca as parcerias empresariais e institucionais.

'É uma coisa sem noção', diz Siron sobre falas de Bolsonaro

Siron tem um parente na cúpula do governo federal, o ministro das Relações Exteriores Carlos Alberto Franco França, que vem a ser seu sobrinho. Isso não o impede de olhar muito criticamente o presidente Jair Bolsonaro.

"As coisas que eu escuto dele [Bolsonaro] eu às vezes penso que é dublagem. Porque não tem noção, é uma coisa sem noção, na minha opinião. Ele é presidente de todos os brasileiros. Não posso ter dez filhos e achar que só dois, que concordam comigo, devem receber meu carinho, atenção e alimento. Eu não acho isso."

Siron disse que, no começo do governo, achou que não deveria torcer para "dar errado" porque seria "um pensamento idiota", já que o país inteiro sofreria. Mas logo depois, disse Siron, o próprio Bolsonaro "se revela, ele se revela".

Em boa parte da pandemia, o artista plástico Siron Franco vive em uma barraca dentro do seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO)  - Sérgio Lima / UOL - Sérgio Lima / UOL
Em boa parte da pandemia, o artista plástico Siron Franco vive em uma barraca dentro do seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO)
Imagem: Sérgio Lima / UOL

Indaguei se sua visão inicial foi demolida. "Lógico. Porque é uma confusão, né. Se você é quem manda em tudo, por que você tem que ter ministério? Manda você em tudo, resolve o problema! Isso não funciona. As outras sociedades já provaram que isso não funciona. E o resultado final não é legal. Esse autoritarismo, que sempre tenta renascer e renasce - esses neofascistas na Europa também né -, isso não funciona."

Para Siron, o Brasil atual "traz um ensinamento e revela também um lado da mudança em relação à cordialidade enquanto brasileiro". "Eu sempre tive amigo evangélico, pastor, o diabo, isso não importa na minha relação ser boa com o cara. Agora, essa polarização não é boa para ninguém e é pior para essa geração nova que está aqui agora. Porque você está criando um ambiente em que essa geração vai ouvir e vai repetir esses modelos de agressões."

Siron disse que "nunca imaginou" que haveria também um desmonte "da sociedade enquanto gentileza, esse aspecto cultural do Brasil que todo mundo [de outros países] vê e gosta". Ele acha, por outro lado, que "revidar não funciona" porque "é uma energia tão negativa quanto a outra". Embora perdoar, para ele, "não quer dizer que a pessoa não tenha que ser julgada e condenada por qualquer ato que ela faz".

"Eu acho que há uma pobreza de políticos que realmente amem o país. De pensarem, 'Pô, o que eu vou fazer por essa geração?'. Pessoas como o Darcy Ribeiro, de quem eu tive o privilégio de ser amigo, o Antonio Houaiss, o Millôr Fernandes, o Rubem Braga. Eu tive a sorte de, muito menino, eles terem me aceitado como alguém do grupo. Até hoje penso que foi um milagre. Eu saí de Goiás, a diferença de idade era muita na época. A minha mãe falava: 'Meu filho, você só sai com velhos'. Eu falei: 'A senhora está enganada, esses caras é que sabem tudo'."